Por Daniel Santos
Visto no UOL
A comunidade gay, mesmo em tempos de avanços na sociedade e amplo acesso à informação, ainda vive sob o jugo da violência e da discriminação. Embora os homossexuais tenham uma trajetória de lutas que garantiram vitórias significativas - como, por exemplo, a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, em maio, determinou a conversão de união estável homoafetiva em casamento -, a intolerância ainda assusta e mata.
Relatório divulgado pela Secretaria de Direitos Humanos (SHD) no final de junho revelou que, em 2012, os casos de violação - violência física, psicológica e discriminatória - contra os homossexuais cresceram 46,6% no país, passando de 6.809 casos em 2011 para 9.982 no ano passado. Mas esses números podem ser ainda mais assustadores, de acordo com o antropólogo Luiz Mott, militante e fundador do Grupo Gay da Bahia. Para Mott, os dados do SDH são "incompletos" e "subnotificados". "Até fevereiro de 2013, o nosso site - 'Homofobia mata' - contabilizou 338 assassinatos, enquanto o governo divulgou 311 homicídios até junho", criticou Mott.
Para abordar a questão além das estatísticas, o BOL conversou com especialistas que discutiram por que a homofobia ainda é tão presente na nossa sociedade, quem são os homofóbicos e o que mudou na história marcada por ódio e intolerância.
Afinal, quem são os homofóbicos?
Para Carmita Abdo, psiquiatra, professora de Medicina Sexual e coordenadora do ProSex (Programa de Estudos em Sexualidade) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, a repulsa à homossexualidade pode ser consequência da falta de conhecimento. "Todos temos alguma dificuldade, maior ou menor, de lidar com o que é diferente de nós. No caso da homossexualidade, algumas pessoas são realmente avessas e têm necessidade de se contrapor ao que desconhecem e, por isso temem e rejeitam", explica.
A psiquiatra também ressalta que muito se confunde sexo (que se refere a características anatômicas) e gênero (que define um padrão de comportamento com o que a pessoa se identifica). Abdo explica que sexo e gênero não são sinônimos, e que quem não consegue separar um do outro, também não lida bem com a diversidade. Opinião semelhante tem o psicoterapeuta e professor da Professor na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Sócrates Nolasco. "A questão é que o sexo não diz tudo sobre nós, mas acredita-se que dirá tudo sobre os homens fadados a fazer dele um sentido para suas vidas."
No livro "A Cama na Varanda", a psiquiatra e sexóloga Regina Navarro Lins aponta três hipóteses para definir os homofóbicos. "Para alguns isso estaria ligado à noção de que a homossexualidade está em ascensão e que, se não for refreada, poderá ameaçar a unidade familiar e a estrutura da sociedade como um todo. Outro motivo seria a convicção de que a maioria dos homossexuais não se controla sexualmente. Entretanto, é provável que a razão mais significativa da hostilidade dos homens heterossexuais seja o temor secreto dos próprios desejos homossexuais", analisa.
A crítica de Regina remete à pesquisa "Is Homophobia Associated with Homosexual Arousal?" (A homofobia é associada à excitação homossexual?), feita pela Universidade da Georgia (EUA), em 1996. O estudo reuniu 64 homens, com 20 anos em média, que se declaravam heterossexuais, divididos em dois grupos: "homofóbicos" e "não homofóbicos". As classificações foram definidas após uma entrevista que estabelecia o índice de homofobia.
No teste, os voluntários assistiram a três filmes pornográficos com cenas entre heterossexuais, gays masculinos e femininos. Todos vestiram um plestimógrafo peniano (argola de borracha recheada de mercúrio líquido), que registrou a excitação pelo crescimento do pênis. O resultado mostrou que o grupo "homofóbico" apresentou ereção significativa diante das cenas de sexo entre dois homens, o que comprovou a tese da psicologia dinâmica (que mapeia processos mentais) de que indivíduos homofóbicos podem ficar excitados diante de estímulos homossexuais.
"A pesquisa remete para a ideia de que a insegurança lança mão da violência para banir do sujeito a estranheza que sente em relação a si mesmo. Homofóbicos são pessoas que não foram alfabetizadas na própria língua, não sabem dizer-se. A violência serve para integrar o que está despedaçado dentro do sujeito, levando-o a temer a própria desintegração psíquica", analisa o professor Nolasco.
Regina também ressalta que o modelo patriarcal (que estabelece o poder do homem "macho" nas relações sociais), ainda presente na sociedade, reforça o preconceito contra homossexuais. "Ainda é muito forte a mentalidade de que os gays seriam 'traidores' do ideal masculino. E isso pauta um pensamento enquadrado em 'modelos', ou seja, em não aceitar as diferenças", explica Regina.
Por outro lado, a psiquiatra Camita Abdo alerta que é arriscado e simplista afirmar que todo homofóbico seria na verdade um "gay enrustido". "Sem dúvida há homofóbicos que inconscientemente temem a própria homossexualidade e por isso não a suportam no outro. Essa situação já foi descrita por Sigmund Freud, o criador da psicanálise, quando comentou a respeito do "verso/ reverso entre medo e desejo", comenta Abdo.
Os altos índices de violência contra gays também podem ser a constatação de que a ala preconceituosa se sente ameaçada e reage: atualmente, os gays se mostram mais e se apresentam socialmente, com menos disfarces. Está sendo superado o grande constrangimento de ser percebido como gay. "Já há algum tempo estamos assistindo a uma 'transformação gay'... Houve época em que os homossexuais criavam seus espaços sociais e neles conviviam entre si, mas isolados da sociedade heterossexual. Hoje eles compartilham lugares comuns com os não homossexuais. Essa realidade leva alguns homofóbicos a acreditarem que estão sendo invadidos em seu território", avalia Abdo.
A herança do nazismo
O ódio contra gays não é uma manifestação recente. Desde os tempos mais antigos, homossexuais já tinham algozes que rotulavam a homossexualidade: na Idade Média. como pecado; na Idade Moderna, como crime; no final do século 18, a medicina adotou a concepção religiosa, que tratava a homossexualidade como 'doença'. E, ainda hoje, há quem defenda que a homossexualidade deve ser tratada como patologia.
Nos campos de concentração nazista, por exemplo, prisioneiros e soldados gays eram marcados com a letra A, que mais tarde foi substituída por um triângulo cor-de-rosa, para diferenciá-los. Os carrascos acreditavam que era possível curá-los. Os homens eram submetidos a procedimentos clínicos bizarros e cruéis, como a lobotomia - cirurgia que retirava parte do cérebro.
No campo de Flossenburg (Alemanha), nazistas abriram uma casa de prostituição para "livrar soldados doentes e pervertidos". Os gays que se "curavam" eram enviados para combater os russos. Mais tarde, o endocrinologista holandês Carl Vaernet passou a castrar seus "pacientes" do campo de Buchenwald, além de submetê-los a tratamentos com hormônios masculinos. Estimativas apontam que 55% dos soldados gays morreram por causa da ignorância nazista. E, mesmo depois do fim da guerra, as vítimas ficaram sob o poder de americanos e britânicos, que os obrigaram a cumprir o restante da pena sentenciada por nazistas em prisões normais.
Vítimas da homofobia
O tempo avançou, porém a causa gay ganhou outros vilões, com comportamentos de repulsa na política, na religião e nas ruas.
O estudante de Direito André Baliera, 28, ganhou os noticiários depois que foi agredido por dois rapazes na região de Pinheiros, em São Paulo (SP). Na noite de 3 dezembro de 2012, Baliera viveu o terror da "inquisição moderna" que ainda aterroriza gays. Enquanto voltava para casa a pé, o rapaz foi insultado e agredido pelo empresário Bruno Portieri e pelo personal trainer Diego Mosca. Depois da agressão, segundo conta, ainda teve que ouvir que "apanhou de besta" e ainda foi acusado de "revidar as agressões".
"Distorceram os fatos, disseram que eu joguei pedra, que quebrei o retrovisor do carro, que eu os xinguei, revidei as agressões, que não é possível 'adivinhar' que eu sou gay, que não foi homofobia, que foi uma 'mera discussão de trânsito'", critica Baliera.
Os agressores foram denunciados por tentativa de homicídio e enquadrados pela lei anti-homofobia de São Paulo (10948/01), que, em caso de condenação, prevê multa que varia de 1.000 Ufesp's (R$ 18 mil) a 3.000 Ufesp's (R$ 54 mil), segundo informações do UOL.
O jornalista Murilo Aguiar, 24, também viveu a experiência dolorosa de ser agredido por causa de sua orientação sexual. O caso aconteceu nas dependências do clube Yatch, na zona central de São Paulo. Murilo estava na fila do banheiro quando um funcionário da faxina passou a agredi-lo verbalmente, dizendo que "todo gay tem HIV" e, em seguida, o espancou. A ocorrência, que foi parar nas redes sociais, chamou a atenção de um dos sócios do clube, que fez contato com o advogado de Murilo para dar respaldo à vítima. Além disso, representantes da casa informaram que a empresa que prestava serviços de limpeza à boate foi acionada judicialmente, e o clube decidiu por não contratar mais mão de obra terceirizada.
André e Murilo escaparam com vida. Mas nem sempre esse é o desfecho das vítimas de homofobia. Até porque, segundo levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia, a maioria das agressões e assassinatos acontece com gays masculinos. Isto seria um forte indício de que a homossexualidade masculina ainda é mais repugnante para os homofóbicos. A resposta, segundo os especialistas, vem novamente embasada na questão dos modelos criados pela sociedade.
"As manifestações de afeto entre duas mulheres (beijos, trocas de carícias) fazem parte do cotidiano em diversas culturas e não surpreendem, confirmando a maior aceitação da sociedade para com esse hábito", afirma Carmita Abdo. Para Regina Navarro, a cultura patriarcal novamente predomina em relação à repulsa à homossexualidade masculina. "A sociedade é muito fincada no ideal masculino, é por isso que até mesmo homens héteros, geralmente, só demonstram um gesto de afetividade mais ousado com um tapinha nas costas. Nada melhor para ilustrar a homofobia e a hipocrisia da sociedade em que vivemos - na qual a maioria das pessoas defende os direitos humanos - do que a frase de Leonardo Matlovich, soldado da Força Aérea Americana condecorado por sua atuação na Guerra do Vietnã e expulso da corporação em 1975 por homossexualidade: 'A Força Aérea me condecorou por matar dois homens no Vietnã e me expulsou por amar um'".
Quem a homofobia matou hoje?
O Grupo Gay da Bahia, a mais antiga entidade brasileira de defesa dos homossexuais no país, também faz militância no território virtual. Com ajuda de voluntários, a instituição reúne, quase que diariamente, ocorrências de violência contra gays no blog "Homofobia mata". Somente no mês de junho, o grupo relatou 28 casos. As estatísticas, segundo informaram militantes do GGB, são utilizadas inclusive por órgãos de defesa dos direitos humanos nos Estados Unidos.
De acordo a instituição baiana, em 2012, 44% dos crimes contra gays no mundo aconteceram no Brasil. "O país é o campeão mundial de assassinatos de homossexuais. Mais de uma centena são barbaramente assassinados todos os anos, vítimas da homofobia. Após quase três décadas coletando, sistematizando e divulgando o relatório anual destes cruéis assassinatos, consideramos ser necessário a conjugação de pelo menos três estratégias fundamentais e inadiáveis para erradicar os crimes homofóbicos em nosso país", diz o fundador do GGB, Luiz Mott.
Para Mott, é questão de urgência a mudança de mentalidade da sociedade em geral, sobretudo das novas gerações, a fim de que, por meio da educação sexual, a sociedade aprenda a conviver e respeitar a diversidade sexual e de gênero, desenvolvendo sentimentos de tolerância e respeito face aos grupos diferenciados. Além disso, o antropólogo faz uma crítica aos governantes:
"O governo deve ser empenhar em aprovar leis e promover ações afirmativas que garantam a cidadania plena das minorias sexuais, investigando cientificamente as causas e como superar a homofobia cultural dominante em nosso país, punindo exemplarmente os autores de discriminações e crimes homofóbicos", diz Mott, que também classifica como imprescindível a mobilização dos próprios gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, assumindo-se e afirmando sua identidade, evitando situações de risco e denunciando qualquer tipo de discriminação, ameaça ou violência de que forem vítimas.
Aliás, o famoso "sair do armário" é uma das atitudes mais importantes para consolidar os avanços de tolerância, segundo a psiquiatra Carmita Abdo. "Quando o homossexual se camufla, ele acirra a curiosidade e a desconfiança do outro. A partir do momento em que ele se apresenta e se afirma naturalmente, ele pode mobilizar empatia e fortalecer sua inserção social", explica Abdo, que também ressalta a importância da atuação da família de homossexuais na causa gay: "Os pais dos homossexuais devem ser os primeiros e os principais interessados em trabalhar contra esse preconceito que, muitas vezes, infelizmente começa em casa".
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