O escritor, dramaturgo e militante dos direitos LGBT Ricardo Rocha Aguieiras, 68 anos, conta um pouco de sua trajetória contra o ódio aos homossexuais e a rejeição aos idosos.
O movimento LGBT brasileiro é uma arena de debates internos cheia de questões a serem resolvidas. Em um momento em que o conservadorismo avança e os setores fundamentalistas unem-se para barrar os direitos de lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans – muitos dos quais são direitos já conquistados -, ainda há espaço para demandas internas de representação, visibilidade e acolhimento de pessoas marginalizadas.
Lamentavelmente, muitas dessas demandas não conquistam o devido espaço, já que nem sempre conseguem se enquadrar nas lógicas atuais de consumo e do culto à beleza. A questão do envelhecimento LGBT é uma dessas demandas preteridas e invisibilizadas. Apesar disso, a luta pelos gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais idosos conta com vozes pontuais na chamada para a luta. Ricardo Rocha Aguieiras é uma dessas vozes; aos 68 anos de idade, ele é escritor, dramaturgo e militante dos direitos LGBT e conta um pouco de sua trajetória contra o ódio aos homossexuais e a rejeição aos idosos.
Fórum – Como e quando começou a sua atuação na militância LGBT?
Ricardo Aguieiras – Por volta de 1977, fui levado por um namorado meu a uma festa, e nessa festa estava o já então escritor e cineasta João Silvério Trevisan, que tinha acabado de voltar dos Estados Unidos. Ele me convidou para umas reuniões pois pretendia criar um grupo de homossexuais, homens e mulheres, para lutarem pelos direitos e pela discussão da homossexualidade, que depois se tornou o SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual, fundado em 1978. O nome “Somos” era uma homenagem que fazíamos à uma publicação argentina que já existia e que já discutia a homossexualidade. O Somos cresceu muito, acabou criando vários subgrupos espalhados e virou um fenômeno até hoje estudado.
Aguieiras – Bom, era a ditadura militar ainda, apesar de já dando os primeiros sinais de abertura política. Não havia partidos outros além da Arena, que apoiava a ditadura e o MDB, que exercia a possível oposição permitida. Portanto, nosso movimento não era nem partidário e nem ideológico como hoje. Havia apenas um inimigo (declarado): a ditadura. Então era mais fácil lutar, o que não era “situação”, era oposição e ponto! Outra coisa que existia era um senso de empatia, carinho, afeto e solidariedade entre militantes, que depois deixou de existir, quando a ideologia entrou de assalto no meio, junto com a Convergência Socialista. A luta não se resumia às reuniões, tomava nossas 24 horas e nosso cotidiano. Acreditávamos, ingenuamente, na construção de uma nova sociedade, a que estava lá não nos contemplava nem nos interessava. Hoje, sinto que buscam assimilação e o ativismo está totalmente partidarizado, interessam mais os dogmas de um partido que as questões LGBT.
Fórum – Como você enxerga o movimento LGBT atual? Você tem alguma crítica?
Aguieiras – Sim, tenho. Evidente que faço – mesmo que não seja o melhor a ser feito – comparações. Não existia a internet e isso tem que ser assimilado e contextualizado. Como tenho uma formação anarquista e tento me distanciar ao máximo do Poder, me incomoda profundamente o partidarismo dentro do Movimento LGBT de hoje, bem como dicotomias ideológicas de “esquerda” e de “direita” que acho insuficientes, não refletem todas as idiossincrasias humanas, nem ao menos minimamente. Não se enxerga mais o outro militante como um amigo, mas como um colega de luta, apenas. E, se for de ideologia diferente vira rival, não colega. Outra coisa que vem ocorrendo, infelizmente, e de uma gravidade que as pessoas ainda não se tocaram, são as demandas da população de transexuais e travestis que estão gerando brigas, acirramentos, acusações e separações. Não vejo solução a médio prazo, tudo é muito novo, inclusive os discursos, e as pessoas não conseguem nem acompanhar nem absorver tudo. Então vem o ódio. Essa questão é tão grave que vem causando rompimentos nos movimentos de diversos países, como na Argentina onde as pessoas trans não estão mais na sigla “LGBT”, criando um movimento à parte.
Fórum – Alguns meses atrás, você tinha em seu perfil do Facebook uma foto onde segurava um cartaz com os dizeres: “Gays idosos também são (muito) gostosos”. Por que teve essa ideia? O que essa frase representa para você?
Aguieiras – A ideia surgiu por volta de 2004. Eu sentia as pessoas envelhecendo – inclusive eu – mas envelhecendo de uma forma diferente de como envelheceram meus pais e avós e as gerações que vieram antes de mim. Tínhamos mais força, mais disposição e… mais sonhos. A vida não acabava aos 40 ou 50 como antes. Só que as discussões não aconteciam dentro do Movimento LGBT, apesar do restante da sociedade já estar se preparando para o fato. Vivemos mais, inegável, mas e a qualidade dessas vidas? Numa sociedade que sempre negou a morte e se recusa a pensar sobre o morrer; numa sociedade que cultiva o mito da juventude eterna, envelhecer é muito, muito difícil, algo a ser repudiado como se fosse um pecado ou crime. Se falar na população LGBT e mais especificamente nos homossexuais, a coisa se complica bem mais: total invisibilidade.
Fórum – Você acha que pessoas homossexuais, bissexuais e trans idosas sofrem mais preconceito que as mais jovens? Quais são as especificidades e demandas políticas dos LGBTs idosos?
Aguieiras – A luta LGBT sempre foi pelo direito ao amor. E amor remete ao direito à libido. Como, se idosos e idosas são vistos como anjinhos fazendo tricô em cadeiras de balanço e, se muito, vendo a novela das seis e indo dormir às oito? Chega a ser o maior paradoxo do mundo atual: os preconceitos com idosos cresceram tanto quanto os avanços da medicina na prevenção de doenças provocadas pela idade. Eu sabia que teria que resgatar o Direito à libido dos envelhecentes LGBT, sabia que teria uma briga árdua para mostrar que corpos envelhecidos são tão belos quanto corpos jovens e que existem pessoas que se atraem fortemente por idosos e idosas. Para isso, eu teria também que discutir a solidão e a invisibilidade, mostrar que precisamos de medidas específicas pois temos problemas específicos, que HIV em envelhecentes LGBT é diferente de HIV em outros envelhecentes, há outras formas de tratar, há outras doenças oportunistas. Como é o corpo de uma transexual com HIV, por exemplo, após anos e anos de tratamento hormonal? E a reação a medicamentos? Nada se sabe e me olham com espanto quando pergunto.
Não se pensa e se acha que é um “luxo” moradias específicas para idosos e idosas LGBT, acham que o discurso é único e não é. Daí veio o meu resgate à gostosura envelhecida. Coloquei “gays idosos”, por que não posso falar pelas lésbicas, pelas pessoas trans e por intersexuais. Penso que cada segmento deve ter autonomia, falar por si. Eu sei da minha dor… e do meu prazer (risos). Como gay, sei que sofrerei difamações até mesmo depois de morto. Uma coisa é ser preconceitualizado por sua orientação sexual. Outra, bem diferente, é enfrentar esse mesmo preconceito somado à velhice. Não quero nem voltarei ao armário por causa da fragilidade provocada pelos anos. Mesmo que cuidadores exijam isso de mim. Seria mais uma tortura e essa eu não saberia suportar.
Fórum – Quer dizer que as pessoas LGBT idosas são pressionadas a retornar ao armário? Isso acontece?
Aguieiras – Com muitas, sim. Houve, tempos atrás, um caso que ficou conhecido, de uma travesti, a Carla Suely, que vivia bem em um asilo em Santo André, cidade da Grande São Paulo. Ela ficava na ala feminina. Um dia se abriu para uma enfermeira e para uma colega. Estava formada a confusão. As idosas não a queriam na ala feminina, alegavam que “era um homem vestido de mulher, podiam fazê-las mal” e os idosos, de antemão, também não quiseram que ela viesse para a ala masculina, falaram um monte, inclusive “desrespeito”, então, essa senhora teve que deixar o asilo e não sei que fim teve isso. Não vi vontade política por parte da militância em ir a fundo nessa questão. Depois, ouvi umas queixas de gays idosos que frequentavam o bar Caneco de Prata, em São Paulo, que é uma espécie de “gueto” deles: queixas de que a família só ajudaria quando fosse necessário, se nada sobre a homossexualidade viesse à tona. O Jornalista Neto Lucon fez uma pesquisa junto aos asilos de São Paulo. Ele ligava ou ia até eles e, ao falar com quem administrava sempre ouvia “aqui não tem isso de gay, não”. Ou seja: só confirmou…
Fórum – O movimento LGBT já lançou campanhas sobre esse fenômeno no Brasil?
Aguieiras – Não, campanhas mesmo, nunca. Depois de mim, só teve coisinhas tímidas dentro do Movimento LGBT. Para ser justo, a Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual (CADS) de São Paulo, que é ligada à Prefeitura, em sua gestão anterior me convidou (2011) para ajudar a escrever folhetos sobre LGBT idosos e idosas e envelhecimento. Eu escrevi, foram lançados e distribuídos, mas eu achei que teria que ter mais e ser uma ação constante. Em 2010, a Associação da Parada LGBT de São Paulo me ofereceu o trio elétrico. Mas veja o que ocorreu: Me deram uns 60 convites para que eu distribuísse, evidente que para LGBT idosos e idosas. Se eu consegui uns 4, foi muito. O restante, para aproveitar, dei para amigos jovens, na faixa dos 30 anos, 40… e até menos. E olha que eu passei um mês correndo atrás de pessoas. Foi triste. Concluo, então, que a culpa não é apenas da Militância LGBT, mas dos e das idosos e idosas LGBT, também. Não se sentem estimulados para participarem de reuniões, paradas, não se sentem contemplados politicamente, enxergam tudo como um movimento de jovens. Se bem que vejo, hoje, muito desse comodismo também em jovens, que agora esperam tudo do governo e de partidos.
Fórum – O que você propõe para dar mais visibilidade às demandas dos idosos LGBT?
Aguieiras – Qualquer discussão sobre envelhecimento LGBT é válida. A historiadora carioca e militante LGBT Rita Colaço fez, uma vez, uma ampla matéria usando exemplos lá de fora, para moradias e espaços para LGBTs envelhecentes. Ela, inclusive, fez um levantamento de custos, usando materiais mais baratos e sustentáveis para a construção das casas. O grande militante mineiro Osmar Rezende já fez, em Belo Horizonte, dois seminários sobre LGBTs idosos, fui convidado e nunca pude ir. Então, temos que ir tocando o barco, na esperança de que uma hora deslanche. O começo é justamente eu e o que eu fiz, chamei a atenção para um fato outrora invisível, iniciei a discussão. Mas estou quase sozinho nessa, quase.