Num antigo e deteriorado prédio do bairro portenho de Chacarita, 35
travestis argentinos tentam construir uma história de vida afastada da
prostituição, destino inevitável para a maioria deles. São os primeiros
alunos da Escola Popular Mocha Celis, que abriu as portas este ano,
pouco antes da aprovação no Congresso da Lei de Identidade de Gênero,
uma iniciativa inédita no mundo, que permite a modificação de gênero
(masculino e feminino) e nome no documento nacional de identidade,
realizando um simples trâmite em cartório, sem ter de passar, como em
muitos outros países, por exames médicos e psiquiátricos.
Na escola, ainda a única do país, os travestis podem estudar sem
sentir-se discriminados, num ambiente totalmente preparado para
ajudá-los a encontrar um futuro melhor. Na Argentina, a expectativa de
vida dos travestis é de apenas 35 anos. Segundo pesquisas recentes,
somente 14% deles terminam a escola primária, num país que tem 98% de
sua população alfabetizada. Na Mocha Celis (nome de um travesti
supostamente assassinado na década de 80), eles encontram todas as
opções para concluir o primário e, também, os estudos secundários (o
ensino médio local). O curso principal dura três anos, e o diploma
concedido pela escola conta com o reconhecimento do Ministério da
Educação.
- Um de nossos principais objetivos é ajudar nossas alunas a ter uma
educação e conseguir um trabalho digno. A prostituição não é a única
alternativa para os travestis — contou ao GLOBO a professora Claudia
Victoria Puccini, que ajudou a redigir o projeto de lei que, em maio
passado, contou com o respaldo de ampla maioria na Câmara e no Senado.
Para Claudia, que confessou ter um passado como prostituta e algumas
experiências na prisão, “a luta dos travestis é antiga, vem da época em
que nosso país viveu sua última ditadura (1976-1983)”:
- Ainda temos muitos desafios pela frente, imagine que até hoje não se fala em educação sexual em nossas escolas.
Em matéria de reconhecimento de direitos sexuais, a Argentina deu passos
gigantescos nos últimos anos. Em 2009, com forte impulso do governo
Cristina Kirchner, o Parlamento aprovou uma lei que permite o casamento
entre pessoas do mesmo sexo. Desde então, mais de 3 mil casais
homossexuais já passaram por cartórios de todo o país e hoje existem até
mesmo wedding planners especializadas em casamentos gays e contratadas
por argentinos e estrangeiros que chegam à Argentina para selar sua
união.
A Lei de Identidade de Gênero é revolucionária. Com ela o travestismo
deixou de ser considerado patologia e a mudança de gênero passou a ser
um direito humano indiscutível. Ao contrário de outros países como
Uruguai e Espanha, os cartórios argentinos não exigem mais exames
médicos e psiquiátricos para realizar alterações de gênero e nome nos
documentos.
O trâmite ficou tão simples que já provocou até piadas entre políticos
locais. Recentemente, o governador da província de Córdoba, José Manuel
de la Sota, disse que na Argentina é mais fácil trocar de gênero do que
comprar dólares (pelas fortíssimas restrições no mercado cambial).
Algumas alunas da Moche Celis ainda não trocaram seus documentos, mas pretendem fazê-lo em breve.
- Estou superfeliz na escola. Na província de Salta (Norte do país),
onde nasci, me sentia marginalizada - disse Virginia Silveira, de 28
anos.
Sua colega Maia Moyano, de 24 anos, veio de Tucumán, também no Norte do país:
- Vivia numa sociedade muito fechada, onde não podia ser eu mesma.
Na Mocha Celis elas estudam matérias como Memória Transexual, que fala
sobre as vitórias conquistadas pela comunidade travesti nos últimos
anos, inglês e cooperativismo.
- Para nós é um sonho que se tornou realidade. Seria muito bom que
outros países latino-americanos seguissem o mesmo caminho - afirmou
Claudia.