sábado, 9 de novembro de 2013

"Como a imprensa brasileira trata o movimento LGBT" Por Iran Melo



Por *Iran Melo para o Observatório da Imprensa 

Quando representamos alguém, construímos uma fonte de possibilidades do olhar, um norte de orientação para o pensar e o agir. Partindo desse princípio, observar de que forma se dá a representação de um grupo minoritário de direitos sociais na imprensa hegemônica do Brasil é buscar compreender como se constrói, através do jornalismo, uma maneira de se ver, encarar e atuar sobre esse grupo. É sob esse horizonte que a pesquisa intitulada “Ativismo LGBT na imprensa brasileira”, que desenvolvi no Programa de Pós-Graduação de Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo, procurou responder como a imprensa de nosso país trata lésbicas, gays, bissexuais e pessoas transgêneras – travestis, transexuais e intersexuais – (LGBT) em situação de militância política na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo.

O objeto de investigação desse estudo foi o jornal Folha de S.Paulo, veículo de comunicação de massa que mimetiza bem a imprensa nacional, pois é considerado o periódico brasileiro diário de maior tiragem e circulação paga no país há mais de duas décadas. Essa característica o faz ser um meio de grande visibilidade dos fatos noticiosos pautados pelo jornalismo no Brasil e, portanto, uma potente ferramenta de circulação de informações. Além disso, os textos produzidos pela Folha são frequentemente agenciados para edições de outros jornais, o que faz esse veículo ter grande inserção no mercado jornalístico.

Os dados de pesquisa foram notícias sobre as paradas publicadas de 1997 a 2012 (todos os anos do evento). A opção por analisar textos sobre esse tipo de evento se justificou por que essa é a ação de militância do movimento LGBT que tem maior notoriedade diante da mídia e, por isso, é a mobilização coletiva que fornece mais visibilidade à diversidade cultural dos modos de vida e da sociabilidade LGBT. Dentre todas as mobilizações congêneres, a parada de S. Paulo é considerada o exemplar que atualmente congrega o maior número de pessoas no mundo.

Naturalizar preconceitos

Desenvolvi duas etapas de análise. Uma que chamei de análise descritiva e outra de análise interpretativa. A descritiva dividi em dois momentos. O primeiro denominei de análise da visibilidade, isto é, o estudo de fatores que ajudam a dar notoriedade aos textos sobre a parada, à própria parada e, consequentemente, aos atores LGBT de que dela participaram. Nessa análise, observei quantas vezes a Folha publicou notícias sobre o assunto, em que caderno colocou essas notícias, quanto de texto usou na capa para chamar a atenção de leitores/as (se colocou manchete, chamada, abertura, foto), qual foi a extensão de texto dentro do caderno (se, além da notícia em si, usou subtítulo, resumo, foto) e o quanto foi mobilizado de citações diretas de entrevistados/as LGBT. O que percebi, dessa análise, é que a Folha dá muita visibilidade à parada e seus atores, noticiando esse evento todos os anos num dos cadernos mais populares do jornal (Cotidiano), dando voz a LGBT por meio de excertos de entrevistas, inserindo muitas fotos que seduzem para a leitura da notícia etc. Isso mostra que, na análise de fatores como esses, há uma postura positiva do jornal, ou seja, esse periódico cria condições boas para as pessoas conhecerem e se interessarem pelo pleito da parada.

No entanto, eu ainda quis saber o seguinte: como são representados, no interior das notícias, os atores mencionados pela Folha para tratar desse evento de mobilização pública que o jornal expõe tão bem? A fim de responder a essa questão, passei para o segundo momento da análise descritiva e fiz uma investigação que chamei de análise da representação. Nela, baseado numa perspectiva teórica crítica de análise da linguagem, verifiquei a seleção de palavras e formas gramaticais que o jornal usou para designar todos os atores mencionados nas notícias, sobretudo LGBT.

Considerando que a representação de atores sociais em ativismo LGBT como objeto de pesquisa é um importante dado para a reflexão social sobre como esse grupo vem, nos últimos anos, exercendo forte influência na transformação de paradigmas sociopolíticos, meu objetivo foi analisar como as pessoas LGBT são nomeadas quando comparadas a outras também citadas pelo jornal e quais verbos foram usados em trechos que falam sobre elas. Essas estruturas são formas de construir imagens sobre o mundo e um gatilho para orientar leituras e posicionamentos sobre o que está sendo dito e representado. Fiz, portanto, um estudo que procurou desenvolver um olhar crítico sobre a linguagem escrita, uma vez que esse tipo de pesquisa verifica uma operação muito comum, mas pouco percebida por leitores e leitoras: a escolha de palavras (e consequentemente de seus significados), ação muito importante na designação de características de alguém, uma vez que pode naturalizar preconceitos e reforçar arquétipos estigmatizados.

Discurso retrógrado

Com essa análise concluí que os nomes escolhidos pela Folha para se referir às pessoas LGBT constroem sentidos quase sempre muito genéricos, sem identidade clara, como através das palavras “pessoas”, “gente” e “multidão”. Esse modo de representar, mesmo com a grande visibilidade que constatei, não promove os atores LGBT em si. Ao contrário, dissimula a presença deles e apaga os traços identitários dos grupos dessa sigla ou dos diferentes sujeitos que se identificam como LGBT. Isso tem um efeito muito negativo na exposição da diversidade de pessoas presentes num evento de mobilização como a parada.

Além disso, ainda na análise da representação, ao estudar a seleção de verbos que envolviam os atores LGBT, verifiquei que, o jornal apresenta esses indivíduos como agentes de ações que os limitam a seu próprio universo cultural ou ao domínio da Parada. Por exemplo, são comuns frases como “LGBT confeccionaram os panfletos” ou “Gays fizeram performances nos trios”. Não há quase nenhuma referência a ações de alcance mais amplo que atinjam pessoas, coisas e lugares diferentes daqueles já considerados dos próprios atores LGBT. Além disso, também encontrei muitos verbos como “ser” e “estar”, usados pelo jornal para caracterizar LGBT como pessoas “alegres”, “performáticas” e “caricatas”, tipos de adjetivação muito arraigada entre a população em geral e que reduz as habilidades desses atores a práticas que estão ligadas ao entretenimento e que em quase nada tem a ver com uma ação de contestação pública. Esse foi mais um resultado negativo, pois, ao tratar tais indivíduos dessa maneira, a Folha não contribui para um olhar que ultrapasse aquele já usado pelo senso comum sobre o modo de ser de LGBT, o que significa um discurso conservador e, em tempos de reivindicação de respeito à diversidade, um discurso considerado bastante retrógrado.

Ideologia da exclusão histórica

Após esse etapa, parti para a análise interpretativa, buscando entender de que modo esses resultados figuram como discursos que, sendo típicos de uma prática de representação considerada legítima por muita gente (a representação jornalística), interferem no conjunto de práticas sociais que envolvem LGBT no atual cenário sociopolítico para os atores dessa sigla. Assim, concluí que, com base nos resultados do estudo da visibilidade, o jornal parece até ser de vanguarda, pois fornece uma grande e boa imagem de LGBT, mas, ao aproximarmos a lupa e vermos como o periódico seleciona um vocabulário para se referir a esses atores, percebemos que de nada adianta a visibilidade ofertada, pois a representação é excludente e estigmatizadora. Desse modo, é comprovável que o tipo de representação utilizada pela Folha prejudica a imagem de LGBT como sujeitos políticos que estão na Parada do Orgulho LGBT com o objetivo de pleitear respeito às diversas formas de ser (possibilidade silenciada com as palavras genéricas usadas para designar esses sujeitos), de pedir inserção e direitos sociais a todas as pessoas que se reconhecem por alguma letra dessa sigla (o que é negado na representação com os verbos que imobilizam tais indivíduos) e de lutar contra a homofobia (ação que é desconsiderada com os efeitos de sentido que os atributos caricaturais dados a LGBT exercem sobre a leitura que o jornal faz dessas pessoas).

Em suma, essa pesquisa constatou duas macro situações no cenário da imprensa brasileira. A primeira é que uma prática de visibilidade não necessariamente gera inclusão, pois é possível dar notoriedade a alguém sem incluir e possibilitar sua emancipação: o que produz essas duas práticas é uma representação democrática, justa e equânime. A segunda gira em torno da falta de relação entre os efeitos de sentido da representação de LGBT na Folha e os objetivos do movimento LGBT no Brasil. Este busca alcançar o respeito e a consolidação de direitos sociais aos atores dessa sigla – tão maltratados e violentamente eximidos de viver sua afetividade, sexualidade e performance de gênero como qualquer pessoa que não seja LGBT – enquanto a Folha parece optar pela manutenção da ideologia que conserva a exclusão histórica de LGBT no Brasil.

*Iran Melo é professor, Camaragibe, PE

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