Publicado no O Dia
Por Marcia Vieira
Eles não tinham vergonha de desmunhecar, empinar o corpo ou correr como
gazelas dentro das quatro linhas. Homossexuais assumidos, Jorge
Emiliano dos Santos, o Margarida, Walter Senra, o Bianca, e Paulino
Rodrigues da Silva, o Borboleta, roubaram a cena no fim dos anos 80 e
início dos 90 ao inaugurar a arbitragem gay no futebol. Com muito
profissionalismo, o trio de amigos superou preconceitos, driblou a
violência e ficou conhecido pela irreverência e o apito honesto. Uma
história que será eternizada no livro ‘Parada Dura, Memórias de um Juiz
Gay do Futebol Carioca’, escrito pelos jornalistas Anna Davies e Carlos
Nobre, que será lançado no primeiro trimestre do ano que vem.
A obra conta a trajetória do cearense Paulino desde os 16 anos, quando
ele trocou a Caponga, interior do Ceará, pelo Rio, onde se tornou
árbitro de futebol e advogado trabalhista, até a coroação como Rainha
das Quengas. O livro aborda também a amizade de um trio de amigos ligado
pelo futebol.
“Conheci primeiro o Margarida, que foi meu bandeira em um jogo. Daí
nasceu uma grande amizade. Depois conheci o Bianca e também ficamos
muito amigos. Foi o Margarida que revelou a nossa homossexualidade em um
entrevista ao ‘Jornal dos Sports’. Na época, eu era juiz classista do
tribunal e queria processá-lo de qualquer jeito”, conta às gargalhadas
Borboleta para em seguida cair em lágrimas ao lembrar da perda dos
amigos. Margarida morreu em 95 e Bianca, em 2002.
“Foi muito doloroso, a gente fazia tudo junto (Borboleta começa a
chorar). Se a gente fosse apitar no mesmo dia o encontro era certo. Cada
um levava o seu garoto e não faltava provocação: ‘Bandida, cuidado, o
meu não, hem!’”.
Quem ouve Borboleta falar com naturalidade sobre a sua opção sexual não
imagina o longo sofrimento que passou para se aceitar. Foram vários
relacionamentos difíceis com mulheres até ele sair do armário, graças à
mãozinha de um pai de santo.
“Um amigo me levou a um pai de santo português. Ele fez um trabalho.
Dormi, deitei para o santo e depois ele jogou búzios e me disse: ‘Não
adianta você procurar uma mulher. Não vai dar certo. Daqui para a frente
você vai procurar um namorado’”.
A sentença soou como decreto e Paulino passou a correr atrás de sua felicidade.
Em janeiro deste ano ele foi até eleito a Rainha das Quengas, em um
concurso promovido por um bar de mesmo nome na Lapa. “Fiquei orgulhoso,
teve uma disputa muito grande com quengas mais novas. Mesmo sendo mais
maduro, ganhei. Estou curtindo”.
De bem com a vida e consigo mesmo, Borboleta faz questão de mandar um
recado para quem não teve coragem de sair do armário: “Quem nunca se
assumiu que se assuma. Que se dane o preconceito. Ninguém pode lutar
contra a própria natureza”.
Violência perseguiu ex-árbitro
Além de sofrer muito preconceito sexual, Borboleta conviveu de perto com
a violência do futebol. Ele chegou a perder dois dentes após receber
vários socos dos jogadores do Campo Grande na derrota por 2 a 0 para o
Vasco em 1992. E em 1990 teve uma arma apontada para sua cabeça por um
torcedor do América, que não se conformava com a derrota por 3 a 2 para o
Fluminense, em Três Rios.
“No interior praticamente não havia proteção policial e nem vestiário, e
os juízes ficavam entregues à sanha apaixonada de uma torcida. O
Borboleta apanhou muito”, conta o jornalista Carlos Nobre, um dos
autores da obra.
Violência à parte, foi a incrível história de Borboleta que chamou a
atenção da jornalista Anna Davies. “Depois que o conheci tive o
‘insight’ de escrever o livro para resgatar a história dele. Só não
tinha a noção da sua importância. Quem meu deu essa dimensão foi o
Carlos Nobre”, ressalta Anna.
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