Publicado pela Época 
Por Ruth de Aquino
Esse era um dos cartazes, empunhados com orgulho hétero, na manifestação
 gigante de Paris no dia 13: Un enfant = un papa + une maman. Centenas 
de milhares de franceses saíram do armário para dizer “não” ao projeto 
de lei do governo socialista de François Hollande de “mariage pour tous”
 (casamento para todos). No país da “liberté, égalité et fraternité”, os
 homossexuais ainda não têm direito ao casamento civil – e avós, papais,
 mamães, jovens e criancinhas defenderam nas ruas uma versão idealizada e
 romântica da família contra “a ameaça gay”. 
A crise econômica e o desemprego atingem seriamente a Europa, mas o que 
leva uma imensa multidão a marchar no inverno parisiense não é a 
exigência de “trabalho para todos” – eles só querem impedir que 
homossexuais casem nos cartórios. Segundo as autoridades, foram 340 mil 
manifestantes. Segundo os organizadores, de 800 mil a 1 milhão. A 
disparidade dos números é um indício da irracionalidade do debate. La 
France n’est pas un pays sérieux. 
Por que esse pânico, que beira a histeria? O que muda realmente na vida 
de um casal heterossexual se outro casal, homossexual, decide 
transformar sua união estável em casamento? Qual o resultado pernicioso 
dessa lei? Que significado teria, além de celebrar a igualdade de 
direitos civis numa democracia republicana laica, e não numa teocracia? 
O que está em jogo não é o ritual da cerimônia, nem os papéis assinados 
ou os direitos à pensão ou herança. O que apavora os homofóbicos costuma
 vir logo depois do casamento: os filhos, a família. Os héteros mais 
fanáticos surtam só de pensar que um casal gay, de homens ou mulheres, 
tenha direito à paternidade ou à maternidade. Aí é demais. Contraria a 
natureza. O que será desses meninos e meninas, meu Deus?
Como se tivéssemos produzido gerações de crianças e adultos “normais”, 
livres de neuroses e traumas. Como se a heterossexualidade de pai e mãe 
assegurasse um vínculo afetivo sadio, um ambiente familiar exemplar. O 
argumento de que gays, por gostarem de pessoas do mesmo sexo, criarão 
filhos infelizes ou desajustados é de uma prepotência difícil de 
engolir.
“É natural o receio de que essas crianças sofram alguma discriminação na
 escola”, afirma a psicanalista e terapeuta familiar Junia de Vilhena. 
“Atendo no consultório um casal de mães homossexuais que se preocupam 
com a filha de 10 anos na escola. Mas a menina está muito bem integrada 
num meio liberal. As amiguinhas não questionam. Normalmente, quando 
existe preconceito, vem dos pais dos alunos, mesmo nas escolas mais 
avançadas. Sou esperançosa. A sociedade aos poucos aceitará. Pior e mais
 cruel é o preconceito contra crianças gordas. Elas enfrentam 
barbaridades.”
 
Mesmo nos países com leis progressistas, como o Brasil, desconfio que a 
maioria silenciosa da população seja contra o direito de um casal gay de
 educar uma criança como seu filho. Não importa o método: adoção, 
inseminação, fertilização in vitro ou acordos domésticos com amigos ou 
amigas. Há uma turma que considera a criança mais bem assistida num 
orfanato do que na casa de pais ou mães homossexuais.
“Dificilmente, hoje, encontramos essa família idealizada de um filho, um
 papai e uma mamãe, uma visão ligada à ideia do amor romântico e 
eterno”, diz Junia. A família de núcleo patriarcal é hoje minoria. 
Crianças vivem só com a mãe solteira, separada e provedora. Ou com 
padrastos, madrastas e meio-irmãos. “A classe alta não está nem aí para 
as regras. A classe baixa está fora desse sistema – em vez de sonhar com
 o casamento ideal, foca na sobrevivência. Quantos pais nem sequer 
reconhecem seus filhos. Ou têm amantes. Essa família arrumadinha e feliz
 nunca existiu, mas ainda é uma aspiração da classe média. Muitos homens
 e mulheres ficam juntos e infelizes até morrer.”
Estranho pensar que muitas de nós lutaram pelo direito de não casar de 
papel passado nem na igreja. Tive dois filhos, de dois homens, jamais 
casei oficialmente por ser contra associar o amor a qualquer contrato ou
 rito perante um juiz ou um padre. Há 40 anos, num mundo ainda com 
utopias, era uma transgressão. Formei minha família com erros e acertos.
Ser pai ou mãe, mais que uma possibilidade biológica, é um aprendizado. 
“Podemos encarar a família como uma prisão ou um lugar de abrigo. Um 
espaço de trocas ou de isolamento coletivo. Um agente de mudanças ou um 
dispositivo de alienação. De qual família estamos falando?”, diz Junia.
Alguns heterossexuais convictos alegam que gays só formam um casal, e 
não uma família. Um homem e uma mulher sem filhos tampouco são uma 
família. Mas conviver com filhos biológicos ou adotados, exercer a 
paternidade e a maternidade, deveria ser, sim, um direito de todos. O 
mundo caminha nessa direção. É irreversível. Nenhuma “parada hétero” 
reverterá esse processo. 

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