Visto na Folha
Por Juliana Cunha
Para o jornalista Millôr Fernandes, entre todas as taras sexuais não
existe nenhuma mais estranha do que a abstinência. A pedagoga Elisabete
Oliveira, que escreve sua tese de doutorado sobre assexualidade, não
poderia estar mais de acordo: "As pessoas têm mais facilidade para
entender as variações do desejo do que a falta dele".
A área de estudo de Oliveira é particularmente nova: há poucos trabalhos
científicos sobre o tema no mundo, e a maioira deles apresenta a
assexualidade como transtorno, segundo ela. "Até hoje foram escritos
menos de 30 artigos que enxergam o desinteresse pelo sexo como opção".
Os próprios assexuais contribuíram para transferir seu comportamento do
campo da patologia para o das escolhas. A partir dos anos 2000, eles
passaram a se organizar em comunidades virtuais e a tentar se definir.
Aos trancos e barrancos, chegaram à definição atual do que vem a ser um
assexual: "É uma pessoa que sente pouco ou nenhum desejo por outras
pessoas", explica a estudante colombiana Johanna Villamil, 26,
representante da Aven (Asexual Visibility and Education Network) na
América Latina.
Dentro da definição há espaço para quem sente repulsa ao sexo, namora
sem transar, pratica masturbação e até transa sem interesse, no intuito
de agradar o parceiro.
Com 40 mil membros, 2 mil na América Latina, a Aven é a maior
organização do gênero e acha que poderia ser maior: "Pouca gente se
identifica como assexual, o termo é desconhecido e parece pejorativo.
Nossa intenção é sair do armário para que outros se reconciliem com a
opção de não transar", diz Villamil.
No DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), catálogo
de doenças mentais da associação americana de psiquiatria,
assexualidade tem nome e sobrenome: é síndrome do desejo sexual
hipoativo, considerada um desvio.
"Para o DSM ninguém é normal", relativiza Carmita Abdo, coordenadora do
projeto de sexualidade do Hospital das Clínicas. A psiquiatra lembra que
há mais diversidade entre quatro paredes do que fazem supor as revistas
femininas: "Por vivermos numa sociedade hipersexualizada, não transar
parece problema grave, mas ninguém deve ser medicado por não ter desejo,
a não ser que isso gere sofrimento".
Deficiência hormonal, depressão, vaginismo, problemas de tireoide ou de
ereção, menopausa, hipertensão e diabetes são alguns fatores que podem
minar a vontade de sexo. É comum, no entanto, que pessoas saudáveis
percam o desejo por um tempo: "Sexualidade não é uma linha eternamente
ascendente. Para se considerar assexuada a pessoa precisa estar numa
fase longa de falta de desejo sem motivo de saúde, acima de seis meses",
diz Abdo.
A fase prolongada de F. Michele, 30, tem durado sua vida inteira. A
funcionária pública baiana já tentou relacionamentos com homens e
mulheres só para ter certeza de sua indiferença ao sexo: "Não me faz
falta. Mantive relacionamentos quando me senti exigida, mas hoje sei que
é contra minha natureza", diz.
Até os 28, Michele conta que levantava suspeitas ao pular Carnaval e
frequentar shows e nunca ficar com alguém: "Beijei alguns homens, tive
relacionamentos rápidos, sem sexo, mas ainda assim era estranho nunca me
verem com alguém".
Quando se submeteu a uma cirurgia de redução de estômago, há cinco anos,
a pressão para que namorasse cresceu: "Se você não sai com ninguém
porque é gorda, tudo bem, mas ser magra e só é inaceitável", diz.
Para atender à demanda da família, a moça namorou um rapaz por seis
meses. Não deu certo. Tentou um caso homossexual, fracassou: "Não gosto
da sensação de ser tocada e o suor durante o sexo me incomodava muito,
sentia nojo".
Hoje, Michele se diz apaziguada com sua opção: "Duas das minhas irmãs
sabem que sou assexuada, falei. Para os outros, não preciso me expor
tanto, mas não chego a esconder. Se alguém vem com conversa sobre
namoro, deixo claro: não me interessa".
Para a psicóloga Blenda de Oliveira, todo mundo tem libido e é preciso
investigar as causas antes de aceitar a assexualidade como saudável: "Há
quem tenha baixa libido ou prefira canalizar essa energia para outras
coisas. Mas é raro alguém que não tenha problemas com sua falta de
desejo".
'Nem toda atração é sexual', diz militante
Aos 11, Marcelo C., 22, achou que os amigos haviam enlouquecido: "Do
nada, todos passaram a se interessar por meninas, a falar no assunto, a
inventar motivo para ficar perto delas. Eu continuava o mesmo de
sempre", conta.
Aos 15, continuar o mesmo de sempre passou a ser um problema: "Já era o
lanterninha da turma, o único que não havia beijado". Uma garota de
outra escola, amiga da ficante de um amigo, se interessou por Marcelo:
"Vai ver que era pena, ou ela era tipo gato, que sempre simpatiza com
quem não gosta dele", brinca.
Para não fazer feio, ficou com a menina. Não gostou. Tentou outras oito
garotas até completar 21. "A pressão agora era por sexo e isso eu não
queria mesmo. Continuo virgem", conta.
Hoje Marcelo é estudante de economia no Matogrosso e assexual quase
assumido. A mãe sabe, mas o pai, não. Os primos sabem, mas os irmãos,
não. Marcelo acha que encontrou uma certa harmonia com sua vida sexual:
"Já pensaram que eu era gay ou pervertido, do tipo que gosta de algo tão
estranho que prefere não revelar, mas acho que lido bem com a questão
hoje. Ainda sofro alguns constrangimentos, mas já não estou disposto a
arrumar uma namorada só para constar", finaliza.
A designer colombiana Johanna Villamil, 26, enfrentou problemas
parecidos até se descobrir assexual. "Foi lendo um livro sobre Andy
Warhol que encontrei algumas opiniões dele sobre sexo e amor e me
identifiquei. Vi que outras pessoas pensam como eu nessa questão",
conta.
Johanna começou a ter relações sexuais na adolescência "porque é a coisa
mais legal que pode acontecer quando se é jovem", mas logo percebeu que
não entendia bem a "função do sexo": "Pelo que via ao meu redor, pude
perceber que relações sexuais não faziam os relacionamentos seram
melhores, mais longos ou estáveis, então, passei a me relacionar com as
pessoas de modo diferente", conta.
Para Johanna, o que ela faz hoje é "explorar o tipo de relacionamento
que existe entre o amor e a amizade". Na prática, isso significa que ela
tem namorados, mas não costuma transar com eles: "Não existe apenas
atração do tipo sexual. Existem inúmeros tipos de atração. Eu me
relaciono com pessoas que têm cérebros 'sexy', jeitos 'sexy'", diz a
moça, que hoje é representante da Aven (Asexual Visibility and Education
Network) na América Latina.
'Assexuais são os novos gays', diz especialista em celibato
O novo movimento dos sem desejo é fruto das conquistas de outras
minorias, diz Elizabeth Abbott, especialista em celibato da Universidade
de Toronto, no Canadá.
"Esse é o tema do momento. Os assexuados são os novos gays. A exemplo
dos homossexuais na década de 1970, eles são vistos como doentes e
sofrem punições sociais por suas escolhas", diz.
Se os celibatários se reprimem em nome de uma causa, assexuados não têm
impulso sexual: "Celibato é uma atitude 'santa' de controle dos
instintos. Já assexualidade é vista como ausência de instintos, como se a
pessoa não fosse um ser humano pleno", compara a historiadora.
Grupos de apoio a assexuados podem soar tão sem sentido quanto grupos
dos que não curtem chocolate: não há violência contra assexuados nem
barreiras para que façam o que querem -uma vez que eles não querem fazer
nada.
Mas a categoria vê motivos para se unir: "Vivemos em uma sociedade que
enaltece ideias românticas e vende sexo o tempo inteiro. A gente quer
ser respeitado e não ser constrangido por não ter as mesmas motivações
dos outros", diz o estudante Ricardo Oliveira, 21, do Paraná.
Alguns buscam as redes para lidar bem com o assédio de família e amigos, que tentam empurrar pretendentes.
Já os românticos procuram parceiros que aceitem uma relação sem sexo.
Como o engenheiro gaúcho Ricardo, 25. Ele conta que, quando deu o
primeiro beijo, aos 14, não sentiu nada:
"Estava apaixonado, tinha expectativas altas, mas nada aconteceu".
Hoje, assexual assumido para alguns amigos e familiares, Ricardo tem
problemas para arrumar companhia. "Como acha que sua namorada ficaria se
você falasse para ela: 'Gosto muito de ti, mas não sinto vontade alguma
de sexo', estranho, não?".
Os militantes acham que assumir sua assexualidade fará outros se sentirem melhor com a falta de libido.
No Brasil, o site assexualidade.com.br, com um fórum anônimo e sala de
bate-papo, atrai 70 visitas diárias. É mantido pelo estudante Júlio
Neto, 21. "Assexualidade é algo ainda estranho para o brasileiro, por
conta da nossa cultura, muito sensual", diz.
Dono de uma loja de informática em Pernambuco, ele diz não ter medo do
julgamento social: "Sou o que sou, mas entendo quem não se expõe, é
difícil ser apontado como esquisito".
Julio eventualmente beija garotas: "Não posso chamar o que faço de
'ficar'. É mais complicado, e a menina nunca entende como 'ficar'".
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