Visto no IG - Último Segundo
Por Daniel Aderaldo
Antes de se tornar supervisora regional de 26 escolas públicas e 
ingressar no doutorado em Educação da Universidade Federal do Ceará 
(UFC), Luma Andrade assinou o nome João por 30 anos, foi rejeitada pelos
 pais na infância, discriminada na escola e, mais tarde, no trabalho. 
Na tese de quase 400 páginas que irá defender em três meses, a primeira 
travesti a cursar um doutorado no Brasil relata a discriminação sofrida 
por pessoas como ela na rede pública de ensino. Ela também aponta 
lacunas na formação dos professores. 
Criança nos anos de 1970, no município de Morada Nova, a 170 quilômetros
 de Fortaleza, o único filho homem de um casal de agricultores, era 
João, mas já se sentia Luma. Em casa, escondia-se para evitar ser 
confrontada. Na escola, apanhava dos meninos por querer parecer uma 
menina. Em uma das vezes que foi espancada, aos nove anos, queixou-se 
com a professora e, ao invés de apoio, ouviu que tinha culpa por ser 
daquele jeito. 
Mais tarde, já com cabelos longos e roupa feminina, sofria de segunda a 
sexta-feira na chamada dos alunos, ao ser tratada pelo nome de batismo. 
Não se reconhecia no uniforme masculino que era obrigada a usar. Evitava
 ao máximo usar o banheiro. Aturava em silêncio as piadas que os colegas
 insistiam em fazer. “Se a travesti não se sujeitar e resistir, acaba 
sucumbindo”, lamenta. 
Luma se concentrou nos estudos e evitou os confrontos. "Tem momento que a
 gente quer desistir. Eu não ia ao banheiro urinar, porque eu queria 
usar o feminino, mas não podia. Então eu me continha e, às vezes, era 
insuportável”, relembra. Mas ela concluiu o ensino médio e, aos 18 anos,
 entrou na universidade. Quando se formou aos 22, já dava aulas e 
resolveu assumir a homossexualidade. Quando contou que tinha um 
namorado, foi expulsa de casa.  
Em 2003, já com o título de mestre, prestou concurso para lecionar 
biologia. Eram quatro vagas para uma escola estadual do município de 
Aracati, a 153 quilômetros de Fortaleza. Apenas ela passou. Contudo, o 
diretor da escola não a aceitou. Luma pediu a intervenção da Secretaria 
de Educação do Estado e conseguiu assumir o posto. 
“Eu não era tida como um bom exemplo”. Durante o período de estágio 
probatório, tentaram sabotar sua permanência na escola. “Uma 
coordenadora denunciou que eu estava mostrando os seios para os alunos 
na aula”. Luma havia acabado de fazer o implante de proteses de 
silicone. “Eu já previa isso e passei a usar bata para me proteger, 
esconder. Eu tinha certeza que isso ia acontecer”. 
Anos depois, Luma assumiu um cargo na Coordenadoria Regional de 
Desenvolvimento de Educação de Russas, justamente a região onde nasceu. 
Como supervisora das escolas estaduais de diversos municípios, passou a 
interceder em casos de agressões semelhantes ao que ela viveu quando era
 estudante. 
“Uma diretora de escola fez uma lista de alunos que, para ela, eram 
homossexuais. E aí mandou chamar os pais, pedindo para que eles tomassem
 providências”. A providência, segundo ela, foi “muito surra”. “O 
primeiro que foi espancado me procurou”, lembra. Luma procurou a escola.
 Todos os gestores e professores passaram por uma capacitação para 
aprender como lidar com a sexualidade dos estudantes. 
Um ano depois, em 2008, Luma se tornou a primeira travesti a ingressar 
em um doutorado no Brasil. Ela começou a pesquisar a situação de 
travestis que estudam na rede pública de ensino e constatou que o caso 
da diretora que levou um aluno a ser espancado pelos pais e todas as 
outras agressões sofridas por homossexuais tinham mesma a origem. 
“Comecei o levantamento das travestis nas escolas públicas. Eu pedia 
para que os gestores informassem. Quando ia averiguar a existência real 
do travesti, os diretores diziam: ‘tem aquele ali, mas não é assumido’. 
Percebi que estavam falando de gays”, relata. 
A partir desse contato, Luma trata em sua tese de que as travestis não 
podem esboçar reações a ataques homofóbicos para concluir os estudos. 
Mas também sugere que os cursos de graduação em licenciatura formem 
profissionais mais preparados não apenas para tratar da homossexualidade
 no currículo escolar, mas também como lidar com as especificidades de 
cada pessoa e fazer da escola um lugar sem preconceitos. 
“Cada pessoa tem uma forma de viver. Conforme ela se apresenta, vai se 
comunicar e interagir. O gay tem uma forma de interagir diferente de uma
 travesti ou de uma transexual. O não reconhecimento dessas 
singularidades provoca uma padronização. A ideia de que todo mundo é 
‘veado’”. 
A tese de Luma já passou por duas qualificações. Ela está em fase final,
 corrigindo alguns detalhes e vai defendê-la em julho, na UFC, em 
Fortaleza.  

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