Por Dário Neto*
Dica de Augusto Martins
“O
direito de casar com quem quiser é um direito humano elementar
comparado ao qual ‘o direito de frequentar uma escola integrada, o
direito de sentar onde lhe apraz num ônibus, o direito de entrar em
qualquer hotel, área de recreação ou lugar de diversão,
independentemente da pele, cor ou raça’ são realmente secundários. Mesmo
os direitos políticos, como o direito de votar, e quase todos os outros
direitos enumerados na Constituição, são secundários em relação aos
direitos humanos inalienáveis ‘à vida, à liberdade e à busca da
felicidade’ proclamados na declaração da Independência; e a essa
categoria pertence inquestionavelmente o direito ao lar e ao casamento”.
Hannah Arendt – Reflexões sobre Little Rock, p. 271
Em 1995, o PL 1151 da então Deputada
Federal – hoje Senadora – Marta Suplicy propunha a disciplina da união
estável entre pessoas do mesmo sexo. Até 2006, a bandeira principal do
movimento LGBT era a União Civil com base nesse PL. A partir de então,
com a aprovação na Câmara do PLC 122 de autoria da Deputada Federal Iara
Bernardi, seguindo para a aprovação no Senado, ocorreu a inversão da
bandeira LGBT, tornando-se a sua bandeira principal. Assim como a lei
que criminaliza o racismo e outras práticas de intolerância, a homofobia
deve ser criminalizada. Contudo, quais os efeitos dessa alteração de
pauta do movimento no diálogo com toda a sociedade?
Para compreender esses efeitos, vale-nos o texto de Hannah Arendt – Reflexões sobre Little Rock
– cuja discussão, contextualizada na segregação racial no Sul dos
Estados Unidos, trata da integração em uma escola pública do Estado de
Arkansas, em 1957, quando, por meio da intervenção do Governo Federal,
uma adolescente ingressou na Escola Central de Little Rock. Espantada
com a imagem agressiva dos estudantes brancos em torno da moça, a autora
questiona tanto a legitimidade do Governo Federal em impor a
integração, como também propõe a inversão da luta por inclusão da
população negra, para a legalização dos casamentos inter-raciais que,
até aquele momento, era ilegal em diversos estados do sul. Segundo a
filósofa, embora considere grave o contexto de exclusão, acredita ser um
equívoco o movimento negro contrapor-se a essa exclusão por meio de uma
prática imposta pelo Governo Federal, levando a uma tensão pior do que a
já existente e submetendo, no caso da adolescente, a uma condição de não ser desejada pior do que a franca perseguição, uma vez que essa situação atingia violentamente o orgulho pessoal da envolvida.
Entre todas as formas de violação de
direitos nos estados sulistas, a pior delas era a lei que tornava o
casamento misto uma ofensa criminal. O casamento está associado à vida
privada e diz respeito unicamente aos indivíduos envolvidos que,
conforme a autora: “… não é regida nem pela igualdade, nem pela
discriminação, mas pela exclusividade (as quais) estão e sempre estarão
em conflito com os padrões da sociedade. (…) Assim, todo o casamento
misto constitui um desafio à sociedade e significa que os parceiros
desse casamento preferiram a felicidade pessoal ao ajuste social e estão
dispostos a suportar a carga da discriminação”. Arendt propõe a
luta pelo direito ao casamento misto como a melhor forma de se combater o
racismo no sul estadunidense ao invés de uma política de integração
forçada. Traçando um paralelo entre a luta do movimento negro em
Arkansas e as bandeiras do movimento LGBT no Brasil do século XXI,
parece-nos que a nossa inversão de pauta prioritária incorre no mesmo
equívoco político.
Um
dos efeitos graves dessa inversão é o discurso “vitimista” daqueles que
acham que criticar ou condenar a homossexualidade seja liberdade de
expressão. Na medida em que ocorreu a inversão da pauta, ocorreu também a
mudança discursiva de ataque aos direitos LGBT para a defesa de
privilégio de ofender a população LGBT. Qualificando o PLC 122 de
“mordaça gay” e os defensores desse projeto de “heterofóbicos”, esses
agressores operaram um jogo retórico nessa acusação: o projeto
criminaliza todo ato discriminatório contra orientação sexual e
identidade de gênero, isto é, um heterossexual, homem ou mulher, que for
discriminado por sua condição também terá proteção e seu agressor será
punido conforme o projeto de lei. Os que se colocam contra o PLC 122
fazem vistas grossas propositadamente à totalidade do projeto e o trata
como sendo um privilégio para a população LGBT. No discurso desses mal
intencionados este projeto passou a ser apenas criminalização da
homofobia. Apoiando-se em apenas um dos aspectos do PLC, puderam se
colocar como vítimas ao dizerem que tal projeto é um atentado à
liberdade de expressão e de religião. Embora haja maldade profunda nesse
jogo retórico, o fato é que pegou a ponto de alguns juristas e
intelectuais mais liberais reproduzirem o mesmo discurso e identificarem
sem nenhuma reflexão o PLC 122 como “mordaça gay” e seus defensores
como “heterofóbicos”.
Outro efeito grave dessa inversão de
pauta é o debate dos direitos LGBT saírem do campo civil para o campo
penal. Da luta por direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca
da felicidade, passou-se para a criminalização não somente da violência
física vergonhosa que tem aumentado no Brasil, mas qualquer discurso
vexatório e injurioso contra LGBT. Tendo a concordar com Arendt que o
impedimento ao casamento de pessoas do mesmo sexo é a mais abusiva das
violações e, nesse sentido, todas as outras violações tornam-se
secundárias.
Não se deve entender o direito ao
casamento apenas como defesa da monogamia, mas, enquanto esse direito
inalienável não for garantido, a população LGBT não será tratada como
cidadã e, portanto, não terá reconhecimento em nenhum campo jurídico. Na
medida em que, o individuo não possa constituir família, todos os
outros direitos lhe serão violados e, uma vez reivindicados, serão
entendidos como privilégio.
Atualmente, o Deputado Federal Jean
Willys está impulsionando uma proposta de emenda constitucional que
garanta o direito ao casamento civil igualitário para a população
brasileira com um significativo apoio de artistas e cantores de
expressão nacional. A partir da decisão do STF em 05 de maio de 2011, já
é possível a união civil entre pessoas do mesmo sexo, mas para tanto,
as pessoas interessadas deverão litigar nos cartórios de suas cidades e,
em caso de indeferimento, terão de recorrer às instâncias jurídicas
superiores para garantir esse direito. Embora os efeitos da decisão do
STF tenham sido positivos até o momento, culturalmente a grande parte da
sociedade não entende como sendo o direito ao casamento. Não havendo
essa compreensão, não avançamos para o reconhecimento de cidadania
plena. Inegavelmente, entre a decisão do STF e o reconhecimento social
dos direitos de cidadania da população LGBT, há uma brecha que necessita
ser reparada pela legalização constitucional do casamento entre pessoas
do mesmo sexo.
Em junho de 2010, o Parlamento
argentino aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, um ano
depois (maio de 2011), por decisão unânime, esse mesmo Parlamento
aprovou a mudança de nome social de travestis e transexuais sem
necessariamente terem laudo psiquiátrico para isso. Esta conquista seria
inconcebível antes da aprovação do casamento. A razão deve-se
exatamente pelo que observa Hannah Arendt ao identificar o direito ao
casamento como direito inalienável ao ser humano e, como tal, faz com
que a sociedade nos perceba como cidadãos e não privilegiados quando
reivindicamos outros direitos. É nesse sentido que a PEC impulsionada
pelo Deputado Federal do PSOL Jean Willys busca avançar nos direitos
LGBT.
Desta forma, o movimento LGBT deve
retornar a pauta anterior e lutar prioritariamente pela PEC impulsionada
pelo único deputado federal, gay assumido, Jean Willys por mais que as
“lideranças” insistam na PLC 122. Tornar essa PEC o carro chefe de nossa
luta não significa abandonar o PLC 122 e outros projetos de lei, mas
compreender que nenhum direito nos será garantido enquanto não formos
vistos como cidadãos e cidadãs plenas de direitos. É preciso lutar,
antes de qualquer criminalização, pelo direito à vida, à liberdade e à
busca da felicidade e a essas categorias pertencem inquestionavelmente o direito ao lar e ao casamento.
Somente a aprovação constitucional do Casamento Civil Igualitário fará a
sociedade entender que, conforme afirmou a Presidenta Cristina
Kirchner, a garantia de direitos da população LGBT não restringirá
nenhum direito dos demais membros da sociedade, pelo contrário,
acrescentará o espírito comunitário, colaborativo e plural da sociedade.
Somente desse modo é que deixarão de temer a qualquer reivindicação da
população LGBT e de entender tais reivindicações como privilégio. A
legalização do Casamento Civil Igualitário fará com que percebam que
qualquer discurso que divida a sociedade entre heterossexuais e
homossexuais é ficcional e, portanto, mentiroso e falacioso, uma vez que
nos compreenderão socialmente como cidadãos e cidadã dotadas de
direitos.
*Presidente do Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual de São Paulo. Diácono da Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo. Militante filiado ao PSOL e membro do Setorial LGBT do PSOL de São Paulo
**Este texto tem como base a
discussão feita pelo Deputado Federal Jean Willys no lançamento da
campanha pelo Casamento Civil Igualitário em São Paulo no dia 09 de
junho de 2012. Agradeço ao deputado a indicação do texto de Hannah
Arendt que muito contribuiu para a elaboração do texto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário