sábado, 23 de junho de 2012

"O Movimento LGBT e o Casamento Civil Igualitário" Por Dário Neto




Dica de Augusto Martins 

“O direito de casar com quem quiser é um direito humano elementar comparado ao qual ‘o direito de frequentar uma escola integrada, o direito de sentar onde lhe apraz num ônibus, o direito de entrar em qualquer hotel, área de recreação ou lugar de diversão, independentemente da pele, cor ou raça’ são realmente secundários. Mesmo os direitos políticos, como o direito de votar, e quase todos os outros direitos enumerados na Constituição, são secundários em relação aos direitos humanos inalienáveis ‘à vida, à liberdade e à busca da felicidade’ proclamados na declaração da Independência; e a essa categoria pertence inquestionavelmente o direito ao lar e ao casamento”. Hannah Arendt – Reflexões sobre Little Rock, p. 271

Em 1995, o PL 1151 da então Deputada Federal – hoje Senadora – Marta Suplicy propunha a disciplina da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Até 2006, a bandeira principal do movimento LGBT era a União Civil com base nesse PL. A partir de então, com a aprovação na Câmara do PLC 122 de autoria da Deputada Federal Iara Bernardi, seguindo para a aprovação no Senado, ocorreu a inversão da bandeira LGBT, tornando-se a sua bandeira principal. Assim como a lei que criminaliza o racismo e outras práticas de intolerância, a homofobia deve ser criminalizada. Contudo, quais os efeitos dessa alteração de pauta do movimento no diálogo com toda a sociedade?

Para compreender esses efeitos, vale-nos o texto de Hannah Arendt – Reflexões sobre Little Rock – cuja discussão, contextualizada na segregação racial no Sul dos Estados Unidos, trata da integração em uma escola pública do Estado de Arkansas, em 1957, quando, por meio da intervenção do Governo Federal, uma adolescente ingressou na Escola Central de Little Rock. Espantada com a imagem agressiva dos estudantes brancos em torno da moça, a autora questiona tanto a legitimidade do Governo Federal em impor a integração, como também propõe a inversão da luta por inclusão da população negra, para a legalização dos casamentos inter-raciais que, até aquele momento, era ilegal em diversos estados do sul. Segundo a filósofa, embora considere grave o contexto de exclusão, acredita ser um equívoco o movimento negro contrapor-se a essa exclusão por meio de uma prática imposta pelo Governo Federal, levando a uma tensão pior do que a já existente e submetendo, no caso da adolescente, a uma condição de não ser desejada pior do que a franca perseguição, uma vez que essa situação atingia violentamente o orgulho pessoal da envolvida.

Entre todas as formas de violação de direitos nos estados sulistas, a pior delas era a lei que tornava o casamento misto uma ofensa criminal. O casamento está associado à vida privada e diz respeito unicamente aos indivíduos envolvidos que, conforme a autora: “… não é regida nem pela igualdade, nem pela discriminação, mas pela exclusividade (as quais) estão e sempre estarão em conflito com os padrões da sociedade. (…) Assim, todo o casamento misto constitui um desafio à sociedade e significa que os parceiros desse casamento preferiram a felicidade pessoal ao ajuste social e estão dispostos a suportar a carga da discriminação”. Arendt propõe a luta pelo direito ao casamento misto como a melhor forma de se combater o racismo no sul estadunidense ao invés de uma política de integração forçada. Traçando um paralelo entre a luta do movimento negro em Arkansas e as bandeiras do movimento LGBT no Brasil do século XXI, parece-nos que a nossa inversão de pauta prioritária incorre no mesmo equívoco político.

Um dos efeitos graves dessa inversão é o discurso “vitimista” daqueles que acham que criticar ou condenar a homossexualidade seja liberdade de expressão. Na medida em que ocorreu a inversão da pauta, ocorreu também a mudança discursiva de ataque aos direitos LGBT para a defesa de privilégio de ofender a população LGBT. Qualificando o PLC 122 de “mordaça gay” e os defensores desse projeto de “heterofóbicos”, esses agressores operaram um jogo retórico nessa acusação: o projeto criminaliza todo ato discriminatório contra orientação sexual e identidade de gênero, isto é, um heterossexual, homem ou mulher, que for discriminado por sua condição também terá proteção e seu agressor será punido conforme o projeto de lei. Os que se colocam contra o PLC 122 fazem vistas grossas propositadamente à totalidade do projeto e o trata como sendo um privilégio para a população LGBT. No discurso desses mal intencionados este projeto passou a ser apenas criminalização da homofobia. Apoiando-se em apenas um dos aspectos do PLC, puderam se colocar como vítimas ao dizerem que tal projeto é um atentado à liberdade de expressão e de religião. Embora haja maldade profunda nesse jogo retórico, o fato é que pegou a ponto de alguns juristas e intelectuais mais liberais reproduzirem o mesmo discurso e identificarem sem nenhuma reflexão o PLC 122 como “mordaça gay” e seus defensores como “heterofóbicos”.

Outro efeito grave dessa inversão de pauta é o debate dos direitos LGBT saírem do campo civil para o campo penal. Da luta por direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade, passou-se para a criminalização não somente da violência física vergonhosa que tem aumentado no Brasil, mas qualquer discurso vexatório e injurioso contra LGBT. Tendo a concordar com Arendt que o impedimento ao casamento de pessoas do mesmo sexo é a mais abusiva das violações e, nesse sentido, todas as outras violações tornam-se secundárias.

Não se deve entender o direito ao casamento apenas como defesa da monogamia, mas, enquanto esse direito inalienável não for garantido, a população LGBT não será tratada como cidadã e, portanto, não terá reconhecimento em nenhum campo jurídico. Na medida em que, o individuo não possa constituir família, todos os outros direitos lhe serão violados e, uma vez reivindicados, serão entendidos como privilégio.

Atualmente, o Deputado Federal Jean Willys está impulsionando uma proposta de emenda constitucional que garanta o direito ao casamento civil igualitário para a população brasileira com um significativo apoio de artistas e cantores de expressão nacional. A partir da decisão do STF em 05 de maio de 2011, já é possível a união civil entre pessoas do mesmo sexo, mas para tanto, as pessoas interessadas deverão litigar nos cartórios de suas cidades e, em caso de indeferimento, terão de recorrer às instâncias jurídicas superiores para garantir esse direito. Embora os efeitos da decisão do STF tenham sido positivos até o momento, culturalmente a grande parte da sociedade não entende como sendo o direito ao casamento. Não havendo essa compreensão, não avançamos para o reconhecimento de cidadania plena. Inegavelmente, entre a decisão do STF e o reconhecimento social dos direitos de cidadania da população LGBT, há uma brecha que necessita ser reparada pela legalização constitucional do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Em junho de 2010, o Parlamento argentino aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, um ano depois (maio de 2011), por decisão unânime, esse mesmo Parlamento aprovou a mudança de nome social de travestis e transexuais sem necessariamente terem laudo psiquiátrico para isso. Esta conquista seria inconcebível antes da aprovação do casamento. A razão deve-se exatamente pelo que observa Hannah Arendt ao identificar o direito ao casamento como direito inalienável ao ser humano e, como tal, faz com que a sociedade nos perceba como cidadãos e não privilegiados quando reivindicamos outros direitos. É nesse sentido que a PEC impulsionada pelo Deputado Federal do PSOL Jean Willys busca avançar nos direitos LGBT.

Desta forma, o movimento LGBT deve retornar a pauta anterior e lutar prioritariamente pela PEC impulsionada pelo único deputado federal, gay assumido, Jean Willys por mais que as “lideranças” insistam na PLC 122. Tornar essa PEC o carro chefe de nossa luta não significa abandonar o PLC 122 e outros projetos de lei, mas compreender que nenhum direito nos será garantido enquanto não formos vistos como cidadãos e cidadãs plenas de direitos. É preciso lutar, antes de qualquer criminalização, pelo direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade e a essas categorias pertencem inquestionavelmente o direito ao lar e ao casamento. Somente a aprovação constitucional do Casamento Civil Igualitário fará a sociedade entender que, conforme afirmou a Presidenta Cristina Kirchner, a garantia de direitos da população LGBT não restringirá nenhum direito dos demais membros da sociedade, pelo contrário, acrescentará o espírito comunitário, colaborativo e plural da sociedade. Somente desse modo é que deixarão de temer a qualquer reivindicação da população LGBT e de entender tais reivindicações como privilégio. A legalização do Casamento Civil Igualitário fará com que percebam que qualquer discurso que divida a sociedade entre heterossexuais e homossexuais é ficcional e, portanto, mentiroso e falacioso, uma vez que nos compreenderão socialmente como cidadãos e cidadã dotadas de direitos.

*Presidente do Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual de São Paulo. Diácono da Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo. Militante filiado ao PSOL e membro do Setorial LGBT do PSOL de São Paulo

**Este texto tem como base a discussão feita pelo Deputado Federal Jean Willys no lançamento da campanha pelo Casamento Civil Igualitário em São Paulo no dia 09 de junho de 2012. Agradeço ao deputado a indicação do texto de Hannah Arendt que muito contribuiu para a elaboração do texto.

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