Por Sandra Soares e Thiago Bronzatto
Durante toda a infância, a americana Abigail Garner sentia o coração
acelerar toda vez que alguém mencionava a palavra "bicha" na sala de
aula. De uma primeira geração de crianças criadas em famílias
alternativas assumidas, ela cresceu mostrando o boletim escolar e
negociando o horário de voltar para casa com uma mãe e dois pais - seu
pai biológico decidiu viver com outro homem quando ela tinha 5 anos.
Hoje, aos 33, é uma das mais conhecidas defensoras da causa gay no país,
apesar de ser heterossexual. Desde 1999 escreve textos e dá palestras
que ajudam filhos de homossexuais americanos - segundo estimativas, pelo
menos oito milhões de crianças e adolescentes. Seu blog e seu livro,
Families like Mine: Children of Gay Parents Tell It like It Is (numa
tradução livre, Famílias como a Minha: Filhos de Pais Gays Contam como
É), são referências no assunto.
Nos Estados Unidos, é comum que famílias como a dela assumam
publicamente sua condição. Por lá, já existem até revistas voltadas para
gays com filhos. A que ficou mais conhecida é a And Baby, lançada em
2001. Chegou a ter tiragem de cem mil cópias e fez sucesso com dicas
para, por exemplo, papai e papai se saírem bem ao acompanharem a filha
na compra de bonecas. O Brasil tem cerca de seis milhões de homossexuais
e sedia a segunda maior Parada do Orgulho Gay do planeta. Mas só agora
começa a lidar abertamente com o tema. "As famílias homoparentais são
sempre existiram, mas eram invisíveis por causa do preconceito", afirma o
sociólogo Alípio Sousa Filho, professor da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN) e editor da Bagoas, publicação semestral de
estudos sobre homossexualidade. "Dos anos 80 para cá, há avanços na
aceitação da diversidade e eles estão ganhando mais visibilidade."
Filhos de gays não precisam colecionar, necessariamente, relatos
traumáticos como os de Abigail. Filha adotiva do apresentador Leão Lobo -
gay assumidíssimo -, Ana Beatriz Mota Lobo, (foto acima), garante que
raramente sofreu preconceito por causa do pai. "Meu namorado, por
exemplo, se espantou mais por saber que o sogro era o cara das fofocas
da TV do que com a opção sexual dele", diverte-se ela. Ana fala de sua
criação com uma normalidade absoluta e não tem grandes dramas para
contar. O problema começa da porta para fora. Mesmo completamente
amparada, ela vive em uma família sem os mesmos direitos que as outras.
Se o seu pai quiser se casar com o namorado, por exemplo, não pode. Já
se vão doze anos desde a entrada, no Congresso Nacional, da proposta de
legalização da parceria civil entre pessoas do mesmo sexo. E o projeto
nunca foi votado. Mesmo sem amparo legal, as famílias formadas por
casais gays vêm conseguindo vitórias na Justiça. Ao divulgar em 2002 a
resposta ao pedido de custódia do filho biológico de Cássia Eller, feito
pela viúva da cantora, o juiz que cuidou do caso escreveu: "A questão
da homossexualidade não tem importância. O essencial foi assegurar o
interesse pessoal de Chicão". Pela decisão, o garoto, hoje com 15 anos,
permaneceu com Maria Eugênia Vieira Martins, companheira de Cássia nos
últimos quinze anos de sua vida. A decisão abriu caminhos para casos
semelhantes.
Tudo o que se relaciona à sexualidade, algo tão íntimo, se confronta com
o mundo exterior. Crenças religiosas, maneiras de ver a vida, o lugar
onde se vive - as variáveis são imensas. No caso dos filhos de gays,
essa situação tende a ser exponencialmente maior. Bruna Peixe dos
Santos, 16 anos, sofreu muito a perda de um namorado e de algumas amigas
que se afastaram quando foram apresentados a seu "pãe". Bruna tem uma
mãe biológica que nasceu mulher, mas optou pela identidade masculina. É
um transexual - e adotou o nome de Alexandre Santos, o Xande, atual
secretário da Associação da Parada do Orgulho Gay. "Até os 5 anos minha
filha ouvia eu me apresentar como lésbica", explica Xande. "Quando
compreendi que na verdade eu tinha identidade oposta ao corpo com que
vim ao mundo, mudei meu discurso e meu nome." Entender todas essas
mudanças foi o mais difícil para Bruna. "Era tudo meio confuso. Mas
nunca tive vergonha do meu 'pãe'. Quando eu era mais nova, ameaçava
bater em quem falava mal dele."
Como se vê, quando se chega perto das famílias com pais gays, é possível
perceber que quase sempre o problema maior vem de fora - mesmo quando a
relação dos pais com a sexualidade parece confusa. Somente há pouco
mais de quinze anos o homossexualismo foi retirado da Classificação
Internacional de Doenças publicada pela Organização Mundial de Saúde. Há
mais tempo do que isso, no entanto, as primeiras gerações de filhos de
gays assumidos mostram que família é família. E digam o que quiserem lá
fora.
"Durante muito tempo, eu me recusei a responder à pergunta: 'Você é
heterossexual?' Como outros jovens de famílias como a minha, ser
confrontada com essa questão me fazia sentir como que colocando meu pai
sob julgamento. Ser filho de homossexuais não significa que uma criança
tenha mais ou menos chances de ser gay, mas essa é uma das discussões
que mais vêm à tona quando se fala sobre famílias alternativas. Tive a
sorte de saber que meu pai era gay antes de conhecer a homofobia. O
preconceito é algo que se aprende e, aos 5 anos, eu não havia
aprendido."
Depoimento de Abigail Garner
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