Visto na Folha
Só estamos documentando o que sempre
existiu. Não estamos inventando nada". É assim que a tabeliã Claudia do
Nascimento Domingues descreve o documento lavrado em Tupã, no interior
de São Paulo, criando pela primeira vez no Brasil uma união estável
"poliafetiva" entre três pessoas.
Amigos em comum com o orientador de
doutorado da advogada na USP foram o canal para que os três chegassem
até Claudia, que pesquisa o assunto, e formulassem os termos do acordo
denominado oficialmente de "escritura pública declaratória de união
estável poliafetiva".
"Temos visto, nos últimos anos, uma
série de alterações no conceito de família. Na minha visão, essa união
poliafetiva não afeta o direito das outras pessoas", disse a tabeliã em
entrevista à BBC Brasil.
Segundo a advogada, na prática, o
documento deixa claro apenas as vontades das três pessoas, com diversas
cláusulas (de pensão, comunhão de bens até planos de saúde e separação),
mas caberá a empresas e órgãos públicos aceitarem ou rejeitarem o trio
como "unidade familiar", e os tribunais poderão entrar em ação para
julgar a validade dos potenciais recursos.
A advogada disse que, apesar das
dificuldades e do preconceito que a medida deve encontrar, espera que o
caso abra precedentes para várias outros modelos de família, que podem
incluir dois homens e uma mulher, três homens, duas mulheres e dois
homens. "Há várias possibilidades", disse.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida à BBC Brasil.
BBC Brasil - Como surgiu seu interesse por esse tema?
Claudia do Nascimento Domingues
- Minhas pesquisas mostraram a alteração do conceito de família. Para
melhor ou para pior, não importa, mas a ideia de família que tínhamos
antes não é a única coisa que podemos chamar de família hoje. Em razão
do meu trabalho de tabeliã, vejo também o aumento do número de
diferentes composições familiares e divórcios.
Você já havia sido procurada por famílias poliafetivas?
Já havia identificado uma incidência
desse tipo de família nas minhas pesquisas de doutorado, mas ainda não
tinha sido procurada no cartório, até mesmo porque muitas dessas
famílias nem sabiam que poderiam tentar buscar seus direitos dessa
forma. E foi a partir dos meus estudos que busquei ver como na minha
profissão de tabeliã poderia auxiliar essas famílias a escrever
juridicamente essa situação que de fato já existia.
Como foi o contato do trio do Rio de Janeiro com você em Tupã?
O contato se deu através do mundo
acadêmico. Uma das pessoas tinha amigos em comum com meu orientador de
doutorado da USP e me telefonou dizendo que já havia procurado alguns
cartórios para preparar este documento e tinha encontrado dificuldades.
Mas é importante dizer que não criamos nada novo, eles já viviam assim
há mais de três anos, queriam declarar isto e eu me comprometi a redigir
uma escritura organizando essas declarações de forma pública.
Se essa família tiver um filho, como funcionaria o registro?
Essas questões terão que ser
decididas pela Justiça. Assim também foi com os casais homoafetivos, que
tiveram que brigar muito para que dois homens ou duas mulheres
conseguissem colocar seus nomes numa certidão de nascimento. Quando
procurarem um oficial de registro civil, com o documento trazido pelo
médico apenas constando o nome dos pais biológicos, terão o pedido
rejeitado. Se eles quiserem, com o auxílio de um advogado, discutir a
possibilidade de incluir os três, ou quatro, ou cinco nomes como pais,
terão que argumentar que constituem uma família, porque de fato serão
pais afetivos da criança, em uma ação judicial. Aí entra o juiz para
dizer se reconhece ou não a paternidade e maternidade conjunta. Os
filhos foram incluídos no texto não como parte da relação familiar, mas
como uma previsão de responsabilidade conjunta.
Caso um recurso de reconhecimento de uma família poliafetiva chegasse ao Supremo, qual seria uma provável decisão?
Na minha experiência, tenho visto
que, em casos parecidos, em primeira instância, a solicitação costuma
ser negada, e, com recursos subsequentes, chega-se ao Supremo Tribunal
Federal, que julgará a ação com um olhar constitucional. Foi o que
aconteceu com as famílias homoafetivas. Mas é claro que a corte pode
aprovar ou não a ação.
Por que a ideia da família poliafetiva enfrenta preconceito no Brasil?
Na minha opinião, temos aí dois
conceitos diferentes: a fidelidade e a lealdade. Acho que os países
europeus já compreendem isso melhor do que o Brasil. O conceito que a
gente tem na mente brasileira é o da fidelidade, e o conceito que se
discute nessas relações múltiplas é o da lealdade. É muito diferente.
Você pode ter 30 maridos e ser leal a todos eles, e ter um único e ser
desleal. A fidelidade está ligada ao casamento, a um pertencer ao outro.
É um modo de ver a vida, claro, mas não é o único. Há múltiplas formas
de se relacionar, desde uma paquera, um caso, um namoro até uma união
estável deste tipo e um casamento. Países como a Dinamarca, por exemplo,
aprovaram a união homossexual 30 anos atrás.
Como funciona este conceito em outros países?
A primeira ideia que vem à cabeça é
das famílias patriarcais em alguns países do mundo árabe e da África,
com famílias de um homem e muitas mulheres. Os tradicionais haréns,
coisas do tipo. Mas há sociedades matriarcais, na região do Himalaia,
por exemplo, onde a mulher é que tem diversos maridos, e todos se
esforçam para ser o favorito, enquanto na Índia, em muitas famílias, as
mulheres brigam para serem a favorita do marido. Não tenho dados
oficiais ainda, mas já encontrei a incidência comprovada de famílias
poliafetivas em lugares como os Estados Unidos, a França e a
Grã-Bretanha, além de outros países europeus. Até o momento, no entanto,
não identifiquei registros de escrituras públicas semelhantes à lavrada
aqui nem na Europa e nem na América Latina, há apenas contratos
privados entre os membros dessas famílias.
Seria mais chocante se a família em questão fosse de três ou cinco homens?
Eu acho que seria igual. As pessoas
nem estão pensando nisso. Estão focando no fato do terceiro componente,
considerado um absurdo. Não importa quem ele seja. É visto como uma
falta de respeito aos valores. Imagina quando se fizer uma escritura
pública de cinco pessoas. Na minha opinião os críticos querem sexualizar
a questão, focalizando em definir quem faz sexo com quem. Por que não
podemos começar a discussão com o fato de que essas pessoas pagam
contas? Se fossem cinco homens, por exemplo: todos pagam contas? Dividem
o financiamento da casa? Vai dar briga se houver uma separação? Então
tem que haver regras. Mas vivemos numa sociedade ainda muito
preconceituosa, muito limitada.
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