A representação de São Sérgio e São Baco, símbolos da causa LGBT
Por Jean Wyllys para a Revista Carta Capital
A “Semana Santa” sempre me leva de volta ao passado, à infância e
início da adolescência. Lembro-me não só das proibições, dos
obrigatórios pedidos de bênçãos aos mais velhos e do aparente luto que
cobria tudo.
Recordo-me principalmente das lições de amor ao próximo (de
humanismo, digo hoje) que extraíamos da “paixão de Cristo” discutida nos
encontros da comunidade e da pastoral e no rastro do lançamento da
“Campanha da Fraternidade”. Velhos tempos, belos dias ou vice-versa.
Percebam que a leitura da Bíblia –
seja de seu “velho testamento”, seja dos evangelhos, do Apocalipse e/ou
das cartas de Paulo – levava-me a uma religiosidade saudável. Isto por
que a minha educação e formação intelectual não estava a cargo só da
Igreja. Meus pais me davam educação doméstica e a escola pública me dava
educação formal. Eu estudava e gostava (e ainda gosto) de aprender,
conhecer, comparar dados, tirar conclusões a partir de diferentes
informações.
Na escola, onde se reproduz um
conhecimento obtido por homens e mulheres que se dedicaram e se dedicam a
investigar, com metodologia e honestidade, os fenômenos naturais e
sociais bem como a natureza humana; na escola, aprendi não só que a
Terra gira em torno do Sol (logo, Josué jamais poderia ter parado o Sol
durante a batalha de Jericó, como diz a narrativa bíblica; ele pode ter,
no máximo, parado a Terra); que gripes são doenças virais e que o
câncer não é castigo divino ou impureza mas nasce de uma mutação
genética, mas aprendi também, estudando a história do povo judeu, que a
Bíblia é um conjunto de livros escritos por este povo em diferentes
épocas a partir de mais ou menos três mil anos e que, de lá para cá,
seus textos sofreram sucessivas alterações decorrentes das muitas
traduções (e as traduções têm seus limites, não são reproduções fiéis
nem transparentes).
Logo, a educação formal e o gosto
pessoal por conhecer me impediram de ler a Bíblia ao “pé da letra” nas
reuniões da comunidade ou da pastoral, ou seja, impediram-me de tomar o
fundamento da cultura judaico-cristã que é a Bíblia como verdade
absoluta: a educação formal e o gosto pessoal pelo conhecimento me
impediram de ser fundamentalista.
Em contrapartida, percebem, aqueles
que se opõem à cidadania de LGBTs e, em particular, às reivindicações
pelo casamento civil igualitário e pela equiparação da homofobia ao
racismo e ao anti-semitismo são fundamentalistas. Mas de um
fundamentalismo seletivo.
Vejamos: os fundamentalistas costumam evocar trechos do
Levítico e da Carta de Paulo aos Romanos, em que há referências à
homossexualidade segundo as sucessivas traduções pelas quais passaram os
textos, para justificar suas injúrias e outras violências que praticam
contra os homossexuais, mas ignoram os longos trechos do Levítico que
recomendam sacrifício de animais e oferenda de suas vísceras e de seu
sangue (já pensaram, protetores dos direitos dos animais, o que seria
destes se a Bíblia fosse tomada ao “pé da letra”?
E por que os fundamentalistas se
esquecem desses trechos na hora de perseguir o candomblé e a umbanda
por sacrificar galinhas?); ignoram aquele trecho de Josué em que este
incita a turba a matar gente inocente: “E Josué disse: Por que é que
você fez essa desgraça cair sobre nós? Agora o SENHOR Deus vai fazer a
desgraça cair sobre você! Em seguida, o povo todo matou Acã a pedradas.
Eles apedrejaram e queimaram a sua família e tudo que ele tinha” (Josué,
7, 25-26) – e este é só um dos muitos trechos em que a violência contra
mulheres e crianças é recomendada pelo servo de Deus.
Os fundamentalistas ignoram, de modo providencial, todos os
trechos da Bíblia em que há defesa e promoção da escravidão,
linchamento, tortura e assassinatos cruéis de pessoas quando a evocam (a
Bíblia) para justificar suas injúrias e outras violências contra os
homossexuais.
Ora, se evocam a Bíblia neste caso, por que não naqueles? Se é para ser fundamentalista,
que Malafaia, João Campos, Magno Malta, Eduardo Cunha, Crivella e
quejandos defendam também assassinatos, escravidão e tortura contra
aqueles que não são “servos do Senhor”, já que a Bíblia os recomenda! Ou
será que ainda não o fazem por que não tomaram o poder de todo? Temei
budistas, zoroastistas, umbandistas, candomblecistas, agnósticos e
ateus!
Ora, se nós, em nosso processo histórico de civilização e acúmulo de
conhecimento, fomos capazes de superar moral e eticamente a escravidão;
se conseguimos criar leis para proteger a vida e a dignidade humana
mesmo em se tratando de prisioneiros de guerras; se reconhecemos
direitos de animais (de alguns, ao menos); se deixamos para trás (ou
hoje a maioria de nós abomina) práticas e condutas de tribos de que
existiram há mais três mil anos e que são descritas na Bíblia, por que
vamos tolerar que se evoque a mentalidade de três mil anos atrás em
relação ao que hoje chamamos de homossexualidade?
Se desfrutamos hoje de todos as conquistas da ciência – dos
tratamento médico-farmacológicos contra as gripes e contra o câncer ao
computador que nos permite manter essa comunicação – e sabemos que Josué
não pode ter parado o Sol, como diz a Bíblia, mas talvez a Terra porque
esta é um planeta girando em torno de uma estrela incandescente numa
das muitas galáxias que compõem o universo, por que vamos desprezar o
que a ciência diz sobre a homossexualidade (que ela não é doença; que é
mais uma expressão da sexualidade humana, tecida num diálogo entre
natureza e cultura)?
Não, não vamos desprezar! A conquista da cidadania plena e a
afirmação do Estado laico e democrático de direito passam pelo
enfrentamento aberto e desmascaramento do proselitismo fundamentalista
de reacionários como Magno Malta, João Campos, Marcos Feliciano, Eduardo
Cunha, Crivella e dos pastores e igrejas que financiam campanhas
políticas para terem seus privilégios e interesses assegurados,
beneficiados que são pela isenção tributária garantida pela Constituição
e pela ausência de fiscalização rigorosa do dinheiro que arrecadam com a
exploração da boa fé, sobretudo de gente pobre e desesperada.
E, para essa tarefa, conclamo os outros cristãos que, como eu,
extraem da Bíblia (numa interpretação crítica por se levar em conta
outras fontes de conhecimento) uma religiosidade saudável, livre de fundamentalismo, e voltada para a construção de uma cultura de paz e de respeito à nossa diversidade cultural e sexual.
Eu sei que existem muitos assim. Que estes se façam ouvir, pois nada
mais danoso que o silêncio dos bons ante a tagarelice dos maus.
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