domingo, 8 de abril de 2012

Transexual João Nery lança livro e diz: 'A operação não me fez homem'; confira entrevista



Visto no Paraíba.com
Dica de Augusto Martins 

"Estou aqui para dissolver as normas de gênero.”, declara o carioca João W. Nery, 62 anos, considerado o primeiro homem transexual a ser operado no Brasil. Sensível, humorado e questionador, ele atualmente divulga o livro autobiográfico Viagem Solitária – Memórias de um transexual trinta anos depois, da editora Leya – R$40,00.

A história de João é pouco comum. Ele nasceu Joana, se descobriu homem aos quatro anos e lutou muito – inclusive contra o próprio corpo e períodos femininos, considerados por ele como "mons"truação – para adquirir totalmente a personalidade e o reconhecimento masculino. 

Para realizar seu sonho – “ser um super-herói, casar com uma princesa e ser pai”, como dizia espontaneamente na infância – ele abriu mão dos valores arcaicos, documentos antigos, diploma de psicólogo e... Conseguiu! Hoje, João é um transhomem, marido e pai de um universitário. 

Ele esteve na Casa das Rosas, em São Paulo, e falou ao Virgula LifeStyle sobre o mais novo trabalho, referências masculinas, machismo, preconceito e o que é ser homem em sua opinião. “Se tivesse nascido em um corpo de homem, talvez eu tivesse virado um babaca qualquer”.

Depois de uma vida no anonimato, você entrou para o ativismo LGBT. Imaginou que um dia iria se engajar na luta pelos direitos dos gays, lésbicas e trans?
Não, de maneira alguma. Mas é impossível não ser ativista depois de saber que, somente neste ano, o número de mortes de travestis e gays superaram o do ano passado. São mais de uma morte por dia com requintes de crueldade. É um absurdo. Decidi me expor porque não tenho mais nada a perder, estou com 62 anos, já tenho seis próteses e nenhuma sexual (risos), Então, para mim, tudo é lucro.

Em sua infância, você teve uma excelente relação com o seu pai. Além dele, quais foram as demais referências de masculinidade que você teve?
Minhas referências de figura masculina foram os heróis da época: O Zorro, o Pinóquio e o Peter Pan... Eu me identificava muito com o Pinóquio, não pela mentira, mas por ele ser um menino no corpo de um boneco de pau. E, assim como eu me sentia, tudo o que ele desejava na vida era ser um menino de carne e osso. E também me identificava com o Peter Pan, que não queria crescer. E ele voava e, ah, voar era um dos meus sonhos... Meus sonhos maiores eram ser um super-herói, casar com uma princesa e ser pai.

Para não se curvar à incompreensão, você apostou na flexibilidade da fantasia. Tanto que brincava de ser Zeca quando era pequeno. Você ainda recorre à imaginação hoje em dia?
Com certeza, a imaginação é tuuudo. A imaginação é importante em toda a criação. É aquele colorido que a gente dá a realidade, mas desde que você saiba dosar, não alucine dentro dela. Se você puder usar a imaginação para se fortalecer, ótimo. O grande problema são aquelas pessoas que usam a imaginação para se enfraquecer, imaginar uma catástrofe, essas coisas que dão origem ao medo. Eu sou um cara que quer ser feliz, e faz por onde para ser. Nestas questões, estou com Buda: “Não há um caminho para a felicidade, a felicidade é o caminho”.

Você revela que tentou ser mulher aos 16 anos. Foi uma busca de auto-aceitação familiar?
Via-me mais como uma travesti. Aceitei porque já estava cansado de tanta rejeição, tendo três irmãs que me davam forças para ser mulher, então resolvi... É claro que sabia, lá no fundo, que não iria dar certo. Mas estava carente de aprovação, cansado de sempre ser marginalizado, sofrendo preconceito, machucado, então disse: “Vamos experimentar”, quase como uma brincadeira. E acabei agradando mais do que imaginava, pois era realmente uma mulher muito bonita. Aliás, como homem e andrógino eu também fui muito bonito. Na foto do livro, eu tinha 27 anos e nem tomava hormônio.

Do seu passado repleto de feridas e desafios, você considera que tais experiências foram necessárias ou as classifica apenas como traumáticas?
Tudo o que eu vivi contribuiu para o que eu sou hoje. Tudo é válido. Eu adoro a Joana, de verdade, sem ela eu não teria chegado ao João. Comigo não tem esse negócio de “Vou apagar meu passado”, “Quero esquecer que fui mulher”. Porra nenhuma! Eu acho ótimo. Se eu tivesse nascido em um corpo de homem, talvez tivesse virado um babaca qualquer.

Você é um grande questionador dos valores e regras. Questiona também a palavra “homem”?
Questiono até hoje. Você acha que eu me operei e acho que virei homem? Não virei homem, não! Eu sou um transhomem. Pois se eu me defino como homem hoje, eu estarei entrando nessa categoria hétero, no sentido de só existir homem e mulher. E o que eu quero é mostrar a diversidade, é transcender essas normas de gêneros, tão sectárias, radicais, estereotipadas. Mas é complicado. Eu não vou viver para ver esta mudança social, mas um dia ela vai acontecer.

Para finalizar, qual o título de matéria você adoraria ler envolvendo seu nome?
(Risos). Sei lá, rompendo fronteiras, por exemplo. Gosto muito dessa ideia de transcender. Aliás, acho esse prefixo “trans” muito bom. Não só pelos transexuais, mas de transcender as coisas, transcender os valores, transcender a mesmice, questionar as verdades. É sensacional.

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