Publicado no Estadão
Dica de Augusto Martins
Por Gary Younge, do Guardian
Na primeira turma de formandos da Alliance High School, de Milwaukee, o
orador da turma --o aluno mais prestigioso do ano-- foi aprovado com
média D+. "Eram jovens inteligentes", recorda Tina Owen, fundadora e
principal professora da escola.
"Mas muitos deles haviam enfrentado problemas para ir à escola devido a
bullying e outros tinham problemas em casa. Naquele ano, tínhamos 15
alunos, cinco dos quais moraram comigo em algum momento do ano letivo,
por um e outro motivo."
A Alliance não é uma escola comum. Seu objetivo é atender a uma
comunidade que em geral costuma ser ignorada e, nos piores casos, vê sua
existência negada --os jovens homossexuais. Mas se você a definir como
uma escola gay, será corrigido imediatamente. Os critérios de admissão e
as demais atividades da escola não levam em conta a orientação sexual.
O edifício, uma construção despretensiosa de tijolos situada a alguma
distância da rua, não ostenta bandeiras de arco-íris ou cartazes com
triângulos cor-de-rosa nas paredes. Owen estima que cerca de metade dos
alunos sejam GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transgênero). "Se você é
gay, isso não importa muito. Se não é, tampouco".
Mas a escola, financiada pelo Estado de Wisconsin, é declaradamente
simpática aos gays. "Aqui o aluno pode falar de um relacionamento ou de
um fim de namoro sem se preocupar com a recepção que isso vai ter",
explica Owen. A posição de rei e rainha do baile de formatura está
aberta a todos, não importa o sexo. Um mural na porta mostra a inscrição
"conhecimento, respeito, paz", e um cartaz com o nome "Stonewall Inn".
A escola é pequena --apenas 165 alunos-- e todo mundo se conhece. Os
corredores abrigam proporção maior que a usual de meninos de cabelos
compridos ou com as unhas pintadas. Tudo considerado, a escola oferece
uma massa crítica de jovens que dizem que não se enquadravam em outras
instituições --quer estejamos falando de góticos, punks ou nerds--, o
que faz do não conformismo a norma, na Alliance.
O professor de arte da escola a descreveu afetuosamente, em entrevista
para a revista "Time", como "a ilha dos brinquedos desajustados".
Em um momento no qual a diversidade sexual jamais foi mais aceita nos
EUA, o surgimento de escolas como essa --existem algumas em todo o
país-- parece paradoxal. "O que ter uma escola como essa diz sobre o
nosso país?", pergunta Ritch Savin-Williams, professor de psicologia do
desenvolvimento da Universidade Cornell e autor de "The New Gay
Teenager". As escolas estão sob ataque dos conservadores sociais, grupos
religiosos e até de alguns membros da comunidade gay.
Owen admite que nem todo mundo aprova a ideia. Um menino ligou para casa
depois de alguns dias na escola e disse: "Pai, me tira daqui, esse
pessoal é muito esquisito".
Mas para outros a escola literalmente é uma salvação. Os cabelos longos e
ocasional uso de maquiagem de Dylan Huegerich o faziam alvo de
frequentes zombarias na escola da pequena cidade de Saukville, onde
cresceu. "Eu ficava tão magoado", conta. "Odiava minha vida. Odiava
tudo". Quando a mãe dele se queixou à escola, os dirigentes disseram que
ele devia cortar o cabelo e se comportar de modo "mais másculo".
A mãe disse à revista "Time" que "quando eu o deixava na escola, sabia
que estava sendo ferido. 'Ah, eles te bateram? Bem, hora de voltar à
escola'. Meu coração se partia sempre que ele saía do carro".
Ela decidiu que não matricularia o filho na oitava série. "Eu sentia
que, se entregasse aqueles formulários, estaria condenando meu filho".
Por isso, ele começou a estudar na Alliance, que fica mais longe (cerca
de 90 minutos).
A escola, fundada em 2005, tem por modelo a Harvey Milk High School, de
Manhattan, cujo nome homenageia o ativista dos direitos homossexuais que
inspirou o premiado filme "Milk", credenciada pelas autoridades de
educação em 2002. A escola começou com classes de segundo grau (para
alunos dos 14 aos 18 anos), se expandiu ao ensino médio (alunos dos 11
aos 14), e agora está voltando a se concentrar apenas no ensino
secundário.
Michael Freytes, 17, que é heterossexual, diz que gosta da Alliance
porque não se sente julgado. "Quando eu estava no ensino médio, sofria
muito bullying. Mas na Alliance, os demais alunos não toleram quando
surge um problema como esse e os professores resolvem a situação".
Os estudantes resolvem conflitos por meio do que definem como "justiça
restauradora", com um "círculo de justiça" controlado pelos alunos que,
segundo Freytes, tenta "compreender o problema e resolvê-lo antes que as
coisas escapem ao controle".
A principal justificativa para a existência de escolas como a Alliance é
a segurança --uma resposta institucional ao bullying persistente que os
jovens homossexuais e outros sofrem em escolas convencionais.
O problema continua severo. Uma pesquisa conduzida em 2009 pela Gay,
Lesbian and Straight Education Network (GLSEN) revelou que 90% dos
estudantes GLBT relatavam ter sofrido pressão ou bullying. Quase dois
terços deles declararam não se sentir seguros nas escolas, e 20%
reportaram agressões físicas.
Uma pesquisa de 2007 revelou que 39% dos entrevistados reportavam
agressões físicas e, daqueles que informaram professores ou dirigentes
escolares sobre o bullying, apenas 29% dizem ter obtido intervenção
efetiva. A pesquisa de 2009 também revelou que os índices de bullying e
pressão sobre os homossexuais não haviam mudado ante a década anterior.
PATRULHA NOS CORREDORES
No começo do ano, Kenneth Weisuhn, 14, se matou depois de sair do
armário, em sua escola secundária em Iowa. Ameaças anônimas deixadas em
sua caixa de mensagens foram seguidas de insultos pessoais e de agressão
física que se tornou tão grave que professores tinham de patrulhar os
corredores. Kenneth se enforcou na garagem de seus pais.
Mesmo os pais que não estão dispostos a aceitar a homossexualidade de
seus filhos, diz Owen, compreendem a necessidade de colocá-los em um
ambiente que os estimule. "Querem que seus filhos fiquem seguros. Querem
ter certeza de que suas crianças não serão alvo de cusparadas ou chutes
por serem o que são".
As atitudes quanto à homossexualidade estão mudando radicalmente nos
EUA, mesmo em Estados da região centro-oeste como o Wisconsin, e ainda
que o casamento homossexual venha sendo rejeitado sempre que é submetido
a referendo estadual, o presidente Barack Obama declarou seu apoio ao
casamento gay, que é legal em seis Estados e na capital federal
norte-americana, Washington, regiões que correspondem a 12% do
território do país.
De acordo com o instituto Gallup, hoje quase dois terços dos
norte-americanos acreditam que relacionamentos homossexuais devem ser
legais, ante menos de 50% em 1977.
Hoje, mais de 54% dos norte-americanos acreditam que a homossexualidade
seja moralmente aceitável, ante 40% em 1977. E as pessoas que têm maior
probabilidade de se sentirem confortáveis com a homossexualidade como um
fato da vida que merece proteção e direitos iguais são os jovens.
Previsivelmente, os conservadores sociais não apreciam essa tendência,
ou essa resposta educacional. O presidente do Partido Conservador no
Estado de Nova York, Michael Long, disse que a criação da Harvey Milk
High equivalia a engenharia social. "Existe um modo diferente de ensinar
homossexuais? Existe matemática homossexual? Isso é errado... não há
motivo para que essas crianças sejam tratadas de modo diferente".
Mas elas o são, com frequência, e Chad Weiden, que comanda esforços para
criar uma escola simpática aos homossexuais em Chicago, diz que parte
da competência de um professor é tornar acessíveis aos alunos questões
ocasionalmente abstratas.
"O que importa é tornar a questão relevante para os jovens. Se você vai
ensinar probabilidade, em matemática, pode usar como exemplos os
suicídios dos GLBT, as táticas de parada e revista de minorias pela
polícia ou o desemprego. Um bom currículo também lidaria com questão de
orientação sexual ao tratar de assuntos como evolução, biodiversidade,
antropologia, história e literatura. Isso deveria valer para todas as
escolas, e não apenas aquelas que se veem como simpáticas aos
homossexuais."
Mas por trás desses ataques conservadores existem duas motivações
maiores. A primeira, sustentada pelo conceito de que a homossexualidade é
errada, é que qualquer menção à homossexualidade "normaliza" a
identidade gay e portanto poderia encorajar jovens que de outra forma
não seriam gays a adotá-la.
"E o caso de uma menina virgem que está sendo pressionada por lésbicas e
meninos para fazer sexo? E vocês querem construir uma escola gay?",
disse o pastor Wilfredo de Jesus, de Chicago, ao "Chicago Journal".
"Isso não é justo".
COMPLETA BOBAGEM
Savin-Williams diz que essas acusações são absurdas. "Não existe prova
alguma de que um jovem possa ser levado a escolher homossexualidade ou
heterossexualidade dessa maneira, quando mais que possa ser convertido. É
uma completa bobagem".
Há quem prefira que os jovens homossexuais não sejam vistos ou ouvidos.
Uma rede de clubes de aliança entre gays e heterossexuais surgiu em
escolas dos EUA, para oferecer apoio aos estudantes homossexuais. Mas as
autoridades escolares e pais conservadores em muitos casos se opõem à
iniciativa, o que forçou os alunos associados a alguma dessas redes a
recorrer à Justiça para garantir seu direito de associação, como
aconteceu no ano passado em West Bend, Wisconsin, a apenas 45 minutos da
Alliance.
A direita classifica os esforços de reconhecimento da diversidade sexual
como "promover a agenda gay". Quando Weiden estava tentando estabelecer
sua escola, os conservadores tentaram forçá-lo a dizer que o objetivo
era promover o estilo de vida homossexual.
"Eles provocavam, e queriam que admitíssemos que íamos ensinar o estilo
de vida gay. Eu poderia ter respondido que sou gay, que os alunos seriam
gays, e que a escola seria a escola mais gay da cidade. Mas não é o que
queremos."
A segunda motivação, porém, tem por base a crença, bem mais presente, de
que os adolescentes e pré-adolescentes gays simplesmente não estão em
condição de compreender e rotular plenamente sua orientação sexual; que,
como ser gótico, punk ou nerd, a homossexualidade da adolescência
talvez represente apenas uma fase pela qual estão passando. Isso deriva
em certa medida da ansiedade dos pais quanto à sexualidade que seus
filhos começam a desenvolver.
Mas também deriva da associação entre ser gay e ser sexualmente ativo, e
da tendência a submeter a identidade gay a um padrão distinto da
identidade heterossexual. Um menino de 12 anos que expresse interesse
furtivo por garotas (ou vice-versa) não provocaria grande preocupação.
Ninguém se preocuparia quanto à sua heterossexualidade. Já um menino de
12 anos que se sinta atraído por outros meninos não teria esse luxo.
A identidade sexual é fluida, nesses casos, existe é claro a
possibilidade de que a preferência mude. Mas isso se aplica aos meninos
heterossexuais da mesma forma que aos gays. E as probabilidades apontam
que, gays ou héteros, meninos de 12 anos não devem ainda ter dado seu
primeiro beijo.
"Ninguém pergunta a eles [os adolescentes ou pré-adolescentes
heterossexuais] se têm certeza, ou diz que são jovens demais para saber
se gostam de meninas, e que aquilo é provavelmente só uma fase", diz
Eileen Ross, diretora do Outlet Program, serviço de apoio aos jovens
gays da Califórnia, ao "New York Times". "Mas muitas vezes é isso que
dizemos aos jovens gays. Negamos seus sentimentos e verdade de um modo
que jamais faríamos com um jovem heterossexual".
Em gerações passadas, os jovens esperavam chegar à universidade para
assumir a homossexualidade. Agora, se sentem encorajados a fazê-lo ainda
durante o segundo grau --em uma idade e ambiente caracterizados por
bullying, provocações, descoberta sexual e turbulência hormonal. "Os
jovens estão assumindo mais cedo, e o ensino médio é o pior período para
o bullying", diz Savin-Williams. Há diversos acampamentos de verão nos
EUA que atendem a crianças transgênero a partir dos oito anos de idade.
"Sempre soubemos que o ensino médio era um momento no qual os jovens
lutam para definir suas identidades", disse uma conselheira de escola
média ao "New York Times", admitindo que sua escola estava
"completamente despreparada" para alunos abertamente gays.
Disse também que era comum "deixar passar sem punição as agressões
verbais aos homossexuais porque esse tipo de linguagem é comum na
cultura do ensino médio, e porque no passado não havia alunos que
tivessem assumido o homossexualismo, para os professores ou os colegas.
Agora isso acontece, e estamos tentando correr atrás do problema e
garantir a segurança desses alunos".
Mas as escolas simpáticas aos gays enfrentam resistência de membros da
comunidade gay que acreditam que elas representem segregação, uma forma
de proteger os jovens homossexuais contra as realidades da homofobia e
de permitir que as escolas convencionais não mudem.
Savin-Williams encara com ceticismo as escolas especiais para gays. "A
maioria dos alunos que estudam nessas escolas está lá não tanto por
serem gays mas por não se enquadrarem aos estereótipos de sexo. Isso não
se aplica à maioria dos jovens gays. Onde o processo para? Teremos
escolas para alunos gordos, para alunos irritantes e para todos os
demais que simplesmente não se enquadram?"
Em Chicago, a oposição combinada dos religiosos, conservadores e gays
torpedeou os planos para uma escola local simpática aos gays.
"A comunidade gay reagiu desfavoravelmente", diz Weiden, o promotor da
iniciativa. "Os líderes não aprovavam. Achavam que fosse segregação, e
diziam que se criássemos a escola não estaríamos responsabilizando as
demais escolas pelos seus problemas. Mas os jovens vivem com medo,
agora. Sofrem agora. Vai demorar anos para forçar as escolas a
resolverem seus problemas. Espero que em 10 anos nossa escola já não
seja necessária. Mas agora é".
Owen concorda. "Ainda que as demais escolas devessem estar tratando da
questão, o fato é que não estão", diz. "E não é como se nossos
estudantes não soubessem o que acontece por aí. Por isso escolheram
nossa escola. Dizem que encaram o mundo a cada dia e sabem o que
acontece. E a realidade é que o mundo real é mais parecido com a nossa
escola do que com as demais. É muito mais simpático aos gays".
NO REINO UNIDO
Mais de metade jovens dos homossexuais e bissexuais britânicos já
sofreram bullying homofóbico nas escolas do Reino Unido, de acordo com
uma pesquisa publicada pela Stonewall no começo do mês. Quase todos os
1,6 mil jovens questionados disseram que insultos aos gays são comuns,
uma constatação confirmada por recente relatório da Ofsted que
identificou uso generalizado da palavra "gay" como insulto.
Wes Streeting, diretor de educação da Stonewall, disse que "constatamos
que o bullying contra os gays é menos intenso nas escolas que o definem
explicitamente como inadmissível e nas quais os incidentes são
resolvidos de forma rápida e séria. As melhores escolas são as que vão
além do combate ao bullying e celebram a diferença, tratando as questões
homossexuais de modo positivo em todo o currículo".
Em uma escola primária que reagiu com sucesso ao bullying, inspetores da
Ofsted afirmaram que os alunos se sentiam confortáveis rejeitando
estereótipos --um menino de seis anos estava usando um saiote de balé
sem que os colegas comentassem, e uma menina escreveu um conto de fadas
que terminou em casamento de duas princesas. Os alunos de sexta série
aprendem sobre modelos de comportamento gay como o ator Ian McKellen e o
jogador de rúgbi Gareth Thomas.
Em outra escola onde muitos alunos têm atitudes agressivas quanto aos
gays e as crianças empregam termos insultuosos, o diretor de ensino usa o
currículo para debater questões gays --o estudo da vida de Alan Turing,
na tecnologia; a perseguição dos nazistas aos homossexuais, em
história. A escola apresentou modelos externos de comportamento, como
uma rapper negra lésbica e um grupo de muçulmanos gays.
A Ofsted constatou "queda significativa" na incidência de bullying na
escola, e os funcionários e alunos abertamente homossexuais podem ser
mais abertos quanto à sua sexualidade sem medo de agressão.
Tradução de PAULO MIGLIACCI.
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