quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Nos Estados Unidos, uma escola que recebe bem os gays


Publicado no Estadão
Dica de Augusto Martins
Por Gary Younge, do Guardian
Na primeira turma de formandos da Alliance High School, de Milwaukee, o orador da turma --o aluno mais prestigioso do ano-- foi aprovado com média D+. "Eram jovens inteligentes", recorda Tina Owen, fundadora e principal professora da escola.
"Mas muitos deles haviam enfrentado problemas para ir à escola devido a bullying e outros tinham problemas em casa. Naquele ano, tínhamos 15 alunos, cinco dos quais moraram comigo em algum momento do ano letivo, por um e outro motivo."
A Alliance não é uma escola comum. Seu objetivo é atender a uma comunidade que em geral costuma ser ignorada e, nos piores casos, vê sua existência negada --os jovens homossexuais. Mas se você a definir como uma escola gay, será corrigido imediatamente. Os critérios de admissão e as demais atividades da escola não levam em conta a orientação sexual.
O edifício, uma construção despretensiosa de tijolos situada a alguma distância da rua, não ostenta bandeiras de arco-íris ou cartazes com triângulos cor-de-rosa nas paredes. Owen estima que cerca de metade dos alunos sejam GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transgênero). "Se você é gay, isso não importa muito. Se não é, tampouco".
Mas a escola, financiada pelo Estado de Wisconsin, é declaradamente simpática aos gays. "Aqui o aluno pode falar de um relacionamento ou de um fim de namoro sem se preocupar com a recepção que isso vai ter", explica Owen. A posição de rei e rainha do baile de formatura está aberta a todos, não importa o sexo. Um mural na porta mostra a inscrição "conhecimento, respeito, paz", e um cartaz com o nome "Stonewall Inn".
A escola é pequena --apenas 165 alunos-- e todo mundo se conhece. Os corredores abrigam proporção maior que a usual de meninos de cabelos compridos ou com as unhas pintadas. Tudo considerado, a escola oferece uma massa crítica de jovens que dizem que não se enquadravam em outras instituições --quer estejamos falando de góticos, punks ou nerds--, o que faz do não conformismo a norma, na Alliance.
O professor de arte da escola a descreveu afetuosamente, em entrevista para a revista "Time", como "a ilha dos brinquedos desajustados".
Em um momento no qual a diversidade sexual jamais foi mais aceita nos EUA, o surgimento de escolas como essa --existem algumas em todo o país-- parece paradoxal. "O que ter uma escola como essa diz sobre o nosso país?", pergunta Ritch Savin-Williams, professor de psicologia do desenvolvimento da Universidade Cornell e autor de "The New Gay Teenager". As escolas estão sob ataque dos conservadores sociais, grupos religiosos e até de alguns membros da comunidade gay.
Owen admite que nem todo mundo aprova a ideia. Um menino ligou para casa depois de alguns dias na escola e disse: "Pai, me tira daqui, esse pessoal é muito esquisito".
Mas para outros a escola literalmente é uma salvação. Os cabelos longos e ocasional uso de maquiagem de Dylan Huegerich o faziam alvo de frequentes zombarias na escola da pequena cidade de Saukville, onde cresceu. "Eu ficava tão magoado", conta. "Odiava minha vida. Odiava tudo". Quando a mãe dele se queixou à escola, os dirigentes disseram que ele devia cortar o cabelo e se comportar de modo "mais másculo".
A mãe disse à revista "Time" que "quando eu o deixava na escola, sabia que estava sendo ferido. 'Ah, eles te bateram? Bem, hora de voltar à escola'. Meu coração se partia sempre que ele saía do carro".
Ela decidiu que não matricularia o filho na oitava série. "Eu sentia que, se entregasse aqueles formulários, estaria condenando meu filho". Por isso, ele começou a estudar na Alliance, que fica mais longe (cerca de 90 minutos).
A escola, fundada em 2005, tem por modelo a Harvey Milk High School, de Manhattan, cujo nome homenageia o ativista dos direitos homossexuais que inspirou o premiado filme "Milk", credenciada pelas autoridades de educação em 2002. A escola começou com classes de segundo grau (para alunos dos 14 aos 18 anos), se expandiu ao ensino médio (alunos dos 11 aos 14), e agora está voltando a se concentrar apenas no ensino secundário.
Michael Freytes, 17, que é heterossexual, diz que gosta da Alliance porque não se sente julgado. "Quando eu estava no ensino médio, sofria muito bullying. Mas na Alliance, os demais alunos não toleram quando surge um problema como esse e os professores resolvem a situação".
Os estudantes resolvem conflitos por meio do que definem como "justiça restauradora", com um "círculo de justiça" controlado pelos alunos que, segundo Freytes, tenta "compreender o problema e resolvê-lo antes que as coisas escapem ao controle".
A principal justificativa para a existência de escolas como a Alliance é a segurança --uma resposta institucional ao bullying persistente que os jovens homossexuais e outros sofrem em escolas convencionais.
O problema continua severo. Uma pesquisa conduzida em 2009 pela Gay, Lesbian and Straight Education Network (GLSEN) revelou que 90% dos estudantes GLBT relatavam ter sofrido pressão ou bullying. Quase dois terços deles declararam não se sentir seguros nas escolas, e 20% reportaram agressões físicas.
Uma pesquisa de 2007 revelou que 39% dos entrevistados reportavam agressões físicas e, daqueles que informaram professores ou dirigentes escolares sobre o bullying, apenas 29% dizem ter obtido intervenção efetiva. A pesquisa de 2009 também revelou que os índices de bullying e pressão sobre os homossexuais não haviam mudado ante a década anterior.
PATRULHA NOS CORREDORES
No começo do ano, Kenneth Weisuhn, 14, se matou depois de sair do armário, em sua escola secundária em Iowa. Ameaças anônimas deixadas em sua caixa de mensagens foram seguidas de insultos pessoais e de agressão física que se tornou tão grave que professores tinham de patrulhar os corredores. Kenneth se enforcou na garagem de seus pais.
Mesmo os pais que não estão dispostos a aceitar a homossexualidade de seus filhos, diz Owen, compreendem a necessidade de colocá-los em um ambiente que os estimule. "Querem que seus filhos fiquem seguros. Querem ter certeza de que suas crianças não serão alvo de cusparadas ou chutes por serem o que são".
As atitudes quanto à homossexualidade estão mudando radicalmente nos EUA, mesmo em Estados da região centro-oeste como o Wisconsin, e ainda que o casamento homossexual venha sendo rejeitado sempre que é submetido a referendo estadual, o presidente Barack Obama declarou seu apoio ao casamento gay, que é legal em seis Estados e na capital federal norte-americana, Washington, regiões que correspondem a 12% do território do país.
De acordo com o instituto Gallup, hoje quase dois terços dos norte-americanos acreditam que relacionamentos homossexuais devem ser legais, ante menos de 50% em 1977.
Hoje, mais de 54% dos norte-americanos acreditam que a homossexualidade seja moralmente aceitável, ante 40% em 1977. E as pessoas que têm maior probabilidade de se sentirem confortáveis com a homossexualidade como um fato da vida que merece proteção e direitos iguais são os jovens.
Previsivelmente, os conservadores sociais não apreciam essa tendência, ou essa resposta educacional. O presidente do Partido Conservador no Estado de Nova York, Michael Long, disse que a criação da Harvey Milk High equivalia a engenharia social. "Existe um modo diferente de ensinar homossexuais? Existe matemática homossexual? Isso é errado... não há motivo para que essas crianças sejam tratadas de modo diferente".
Mas elas o são, com frequência, e Chad Weiden, que comanda esforços para criar uma escola simpática aos homossexuais em Chicago, diz que parte da competência de um professor é tornar acessíveis aos alunos questões ocasionalmente abstratas.
"O que importa é tornar a questão relevante para os jovens. Se você vai ensinar probabilidade, em matemática, pode usar como exemplos os suicídios dos GLBT, as táticas de parada e revista de minorias pela polícia ou o desemprego. Um bom currículo também lidaria com questão de orientação sexual ao tratar de assuntos como evolução, biodiversidade, antropologia, história e literatura. Isso deveria valer para todas as escolas, e não apenas aquelas que se veem como simpáticas aos homossexuais."
Mas por trás desses ataques conservadores existem duas motivações maiores. A primeira, sustentada pelo conceito de que a homossexualidade é errada, é que qualquer menção à homossexualidade "normaliza" a identidade gay e portanto poderia encorajar jovens que de outra forma não seriam gays a adotá-la.
"E o caso de uma menina virgem que está sendo pressionada por lésbicas e meninos para fazer sexo? E vocês querem construir uma escola gay?", disse o pastor Wilfredo de Jesus, de Chicago, ao "Chicago Journal". "Isso não é justo".
COMPLETA BOBAGEM
Savin-Williams diz que essas acusações são absurdas. "Não existe prova alguma de que um jovem possa ser levado a escolher homossexualidade ou heterossexualidade dessa maneira, quando mais que possa ser convertido. É uma completa bobagem".
Há quem prefira que os jovens homossexuais não sejam vistos ou ouvidos. Uma rede de clubes de aliança entre gays e heterossexuais surgiu em escolas dos EUA, para oferecer apoio aos estudantes homossexuais. Mas as autoridades escolares e pais conservadores em muitos casos se opõem à iniciativa, o que forçou os alunos associados a alguma dessas redes a recorrer à Justiça para garantir seu direito de associação, como aconteceu no ano passado em West Bend, Wisconsin, a apenas 45 minutos da Alliance.
A direita classifica os esforços de reconhecimento da diversidade sexual como "promover a agenda gay". Quando Weiden estava tentando estabelecer sua escola, os conservadores tentaram forçá-lo a dizer que o objetivo era promover o estilo de vida homossexual.
"Eles provocavam, e queriam que admitíssemos que íamos ensinar o estilo de vida gay. Eu poderia ter respondido que sou gay, que os alunos seriam gays, e que a escola seria a escola mais gay da cidade. Mas não é o que queremos."
A segunda motivação, porém, tem por base a crença, bem mais presente, de que os adolescentes e pré-adolescentes gays simplesmente não estão em condição de compreender e rotular plenamente sua orientação sexual; que, como ser gótico, punk ou nerd, a homossexualidade da adolescência talvez represente apenas uma fase pela qual estão passando. Isso deriva em certa medida da ansiedade dos pais quanto à sexualidade que seus filhos começam a desenvolver.
Mas também deriva da associação entre ser gay e ser sexualmente ativo, e da tendência a submeter a identidade gay a um padrão distinto da identidade heterossexual. Um menino de 12 anos que expresse interesse furtivo por garotas (ou vice-versa) não provocaria grande preocupação. Ninguém se preocuparia quanto à sua heterossexualidade. Já um menino de 12 anos que se sinta atraído por outros meninos não teria esse luxo.
A identidade sexual é fluida, nesses casos, existe é claro a possibilidade de que a preferência mude. Mas isso se aplica aos meninos heterossexuais da mesma forma que aos gays. E as probabilidades apontam que, gays ou héteros, meninos de 12 anos não devem ainda ter dado seu primeiro beijo.
"Ninguém pergunta a eles [os adolescentes ou pré-adolescentes heterossexuais] se têm certeza, ou diz que são jovens demais para saber se gostam de meninas, e que aquilo é provavelmente só uma fase", diz Eileen Ross, diretora do Outlet Program, serviço de apoio aos jovens gays da Califórnia, ao "New York Times". "Mas muitas vezes é isso que dizemos aos jovens gays. Negamos seus sentimentos e verdade de um modo que jamais faríamos com um jovem heterossexual".
Em gerações passadas, os jovens esperavam chegar à universidade para assumir a homossexualidade. Agora, se sentem encorajados a fazê-lo ainda durante o segundo grau --em uma idade e ambiente caracterizados por bullying, provocações, descoberta sexual e turbulência hormonal. "Os jovens estão assumindo mais cedo, e o ensino médio é o pior período para o bullying", diz Savin-Williams. Há diversos acampamentos de verão nos EUA que atendem a crianças transgênero a partir dos oito anos de idade.
"Sempre soubemos que o ensino médio era um momento no qual os jovens lutam para definir suas identidades", disse uma conselheira de escola média ao "New York Times", admitindo que sua escola estava "completamente despreparada" para alunos abertamente gays.
Disse também que era comum "deixar passar sem punição as agressões verbais aos homossexuais porque esse tipo de linguagem é comum na cultura do ensino médio, e porque no passado não havia alunos que tivessem assumido o homossexualismo, para os professores ou os colegas. Agora isso acontece, e estamos tentando correr atrás do problema e garantir a segurança desses alunos".
Mas as escolas simpáticas aos gays enfrentam resistência de membros da comunidade gay que acreditam que elas representem segregação, uma forma de proteger os jovens homossexuais contra as realidades da homofobia e de permitir que as escolas convencionais não mudem.
Savin-Williams encara com ceticismo as escolas especiais para gays. "A maioria dos alunos que estudam nessas escolas está lá não tanto por serem gays mas por não se enquadrarem aos estereótipos de sexo. Isso não se aplica à maioria dos jovens gays. Onde o processo para? Teremos escolas para alunos gordos, para alunos irritantes e para todos os demais que simplesmente não se enquadram?"
Em Chicago, a oposição combinada dos religiosos, conservadores e gays torpedeou os planos para uma escola local simpática aos gays.
"A comunidade gay reagiu desfavoravelmente", diz Weiden, o promotor da iniciativa. "Os líderes não aprovavam. Achavam que fosse segregação, e diziam que se criássemos a escola não estaríamos responsabilizando as demais escolas pelos seus problemas. Mas os jovens vivem com medo, agora. Sofrem agora. Vai demorar anos para forçar as escolas a resolverem seus problemas. Espero que em 10 anos nossa escola já não seja necessária. Mas agora é".
Owen concorda. "Ainda que as demais escolas devessem estar tratando da questão, o fato é que não estão", diz. "E não é como se nossos estudantes não soubessem o que acontece por aí. Por isso escolheram nossa escola. Dizem que encaram o mundo a cada dia e sabem o que acontece. E a realidade é que o mundo real é mais parecido com a nossa escola do que com as demais. É muito mais simpático aos gays".
NO REINO UNIDO
Mais de metade jovens dos homossexuais e bissexuais britânicos já sofreram bullying homofóbico nas escolas do Reino Unido, de acordo com uma pesquisa publicada pela Stonewall no começo do mês. Quase todos os 1,6 mil jovens questionados disseram que insultos aos gays são comuns, uma constatação confirmada por recente relatório da Ofsted que identificou uso generalizado da palavra "gay" como insulto.
Wes Streeting, diretor de educação da Stonewall, disse que "constatamos que o bullying contra os gays é menos intenso nas escolas que o definem explicitamente como inadmissível e nas quais os incidentes são resolvidos de forma rápida e séria. As melhores escolas são as que vão além do combate ao bullying e celebram a diferença, tratando as questões homossexuais de modo positivo em todo o currículo".
Em uma escola primária que reagiu com sucesso ao bullying, inspetores da Ofsted afirmaram que os alunos se sentiam confortáveis rejeitando estereótipos --um menino de seis anos estava usando um saiote de balé sem que os colegas comentassem, e uma menina escreveu um conto de fadas que terminou em casamento de duas princesas. Os alunos de sexta série aprendem sobre modelos de comportamento gay como o ator Ian McKellen e o jogador de rúgbi Gareth Thomas.
Em outra escola onde muitos alunos têm atitudes agressivas quanto aos gays e as crianças empregam termos insultuosos, o diretor de ensino usa o currículo para debater questões gays --o estudo da vida de Alan Turing, na tecnologia; a perseguição dos nazistas aos homossexuais, em história. A escola apresentou modelos externos de comportamento, como uma rapper negra lésbica e um grupo de muçulmanos gays.
A Ofsted constatou "queda significativa" na incidência de bullying na escola, e os funcionários e alunos abertamente homossexuais podem ser mais abertos quanto à sua sexualidade sem medo de agressão.
Tradução de PAULO MIGLIACCI.

Nenhum comentário:

Postar um comentário