Por Wálter Fanganiello Maierovitch para a Terra Magazine
Dica de Augusto Martins
O fenômeno representado pela homofobia aumenta pelo planeta e mostra
as ambiguidades ético-morais presentes em estados laicos cujas
constituições democráticas proclamam a igualdade e repudiam a
discriminação derivada de orientação sexual. Chamo a atenção para dois
recentes episódios discriminatórios, ambos disfarçados com tinta de
matiz farisaica.
Uma das incivilidades ocorreu em Bolonha, por ocasião dos funerais na
gótica Basílica de São Petrônio, do aclamado Lucio Dalla, cantor,
compositor, poeta e arranjador musical. Numa Bolonha de arquitetura
deslumbrante, com cem torres e 35 quilômetros de pórticos. Onde foi
fundada, em 1088, a primeira universidade do Ocidente e que rejeita, nas
urnas, os candidatos de perfil filo-fascista. Dalla nasceu nessa
cidade, como o cineasta Passolini e, no século XIV, o papa matemático
Gregório XIII (1572-1585), autor do nosso calendário bissexto.
A outra ocorrência foi protagonizada pelo conselho representativo do
centenário Club Athlético Paulistano (CAP) e vitimou um casal de médicos
homossexuais, Ricardo Tapajós e Mário Warde Filho. Ao dar prevalência
ao estatuto social, o CAP derrogou a Constituição republicana de 1988 e
fez tábula rasa à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que,
legitimamente, é o guardião da nossa Lei Maior.
Essa decisão surpreende. O clube conta no seu quadro associativo com
destacados defensores do Estado de Direito e já teve, num passado
recente, vultos que lutaram heroicamente pela prevalência
constitucional. Refiro-me à Revolução Constitucionalista de 1932, o
maior movimento cívico da história desse estado bandeirante. Esses
antigos associados, acusados à época de separatistas pelos chamados
“aliancistas” e membros do então partido Democrático de São Paulo, devem
estar a afundar de vergonha nas suas covas em face da recente decisão
de afronta à nossa Lei Magna.
Com efeito. Lucio Dalla faleceu em 1º de março de 2011, durante uma
turnê em Montreux (Suíça). Não deixou testamento, mas preparava a
documentação para dar vida a uma fundação que seria um “laboratório
para, pela música e pela arte, descobrir, preparar e lançar novos
talentos”. Dalla, como todos sabiam, mantinha uma relação afetiva de
mais de dez anos com o talentoso artista Marco Alemanno, de 32 anos. Ele
tinha fé cristã, vivia, como gostava de dizer, “in mezzo alla gente”.
Era visto nos bares, restaurantes e até em igrejas a orar. Era devoto do
popular Padre Pio, considerado como falso taumaturgo pelo papa João
XXIII, mas já conduzido à glória dos altares como santo da Igreja.
Por evidente, interessava à Igreja velar o corpo de Dalla: 30 mil
pessoas passaram pela basílica para o último adeus. E interessava a
ponto de abrir exceção diante das rígidas proibições do tempo da
Quaresma, onde santos são cobertos e celebrações suspensas. Diante da
exceção aberta, exigências eclesiásticas restaram impostas, em especial o
silêncio sobre a união estável Dalla-Alemanno. Também não se pode tocar
as músicas de Dalla: num dos seus sucessos, Caro Amico Ti Scrivo,
consta que “cada um fará amor com quem quiser”. Outra exigência foi
Alemanno passar como amigo de família. Assim, teve permissão para ler a
poesia Le Rondine (As Andorinhas), do falecido convivente Dalla.
A hipocrisia acabou desmontada pela jornalista Lucia Annunziata, que
já presidiu a RAI, televisão estatal. Disse ela que os funerais estavam a
representar um dos exemplos fortes do que significa ser gay, numa
referência à Itália sob influência vinda do outro lado do Tevere, ou
seja, da Santa Sé: “Enterra-se com rito católico desde que não se
propale o fato de o falecido ter sido gay”. O papa Ratzinger já deixou
patente a intolerância da Igreja, embora tivesse tentado consertar a
colocação de considerar o homossexualismo uma doença. Esse caminho
obscurantista ainda é trilhado no Brasil pelos evangélicos, que acabaram
de receber o Ministério da Pesca para refrear o fanatismo, embora
continuem a querer do governo postos psiquiátricos para reversão da
orientação sexual considerada pecaminosa.
No caso do médico Tapajós, que não obteve sucesso na tentativa junto
ao CAP de colocar como seus dependentes o companheiro e a filha deste, o
juiz Zarvos Varellis, ao decidir a lide processual instaurada, lembrou
que o STF reconhece como entidade familiar, à luz dos direitos
fundamentais da Constituição, a união estável entre pessoas do mesmo
sexo. Para o CAP, onde se quer que o estatuto prevaleça à Constituição,
união estável só entre homem e mulher. Certamente, terão os conselheiros
as bênçãos de Ratzinger e da bancada evangélica do nosso Parlamento. A
propósito, convém recordar o observado pelo desembargador Francisco de
Paula Sena Rebouças, na sua recém-lançada obra Uma República Provincial
(Ed. Manole), “somos herdeiros de uma cultura autocrática que, a partir
do absolutismo monárquico, passou pelo mandonismo do senhor das terras e
dos escravos, pela prepotência das botas e seus maquiavélicos tacões”.
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