Publicado na UFMG
Eventos como as paradas de orgulho gay atraem cobertura de jornais e
emissoras de TV, mas essa cobertura se concentra em aspectos como o
exotismo das imagens e personagens e até o rendimento do evento para a
economia da cidade que o abriga.
Os movimentos sociais que promovem os eventos não são ouvidos. “Parece
que há grande dificuldade de esses dois agentes sociais conversarem. Há
um silêncio, uma certa indiferença mútua”, afirma o professor Bruno
Souza Leal, do Departamento de Comunicação Social da Fafich.
Ao lado do colega de departamento Carlos Alberto de Carvalho, ele lança
neste sábado, 15, o livro Jornalismo e homofobia no Brasil: mapeamento e
reflexões (editora Intermeios), que leva a público pesquisa realizada
entre 2008 e 2010. Nesta entrevista, Bruno Leal conta o que a pesquisa
revelou sobre as relações de gênero e afetivo-sexuais e sobre o próprio
jornalismo. “Como é lugar de tensão da vida social, a homofobia diz
muito dos modos de ser do jornalismo”, afirma o pesquisador.
Por que é importante saber sobre essa relação entre ao jornalismo e a homofobia?
A homofobia e as relações de gênero e as afetivo-sexuais são lugar de
tensão da vida social brasileira, fazem parte de diversas realidades,
das configurações identitárias, ou seja, são um campo delicado, difícil.
E, consequentemente, desafiam os modos de ser do jornalismo. A partir
das relações de homofobia, apreendemos aspectos ou dimensões do fazer
midiático, dos modos de ser do jornalismo, que numa visada mais
tradicional não conseguiríamos vislumbrar. É um bom lugar para se
problematizar o jornalismo. No caso da homofobia, não trabalhamos com
essa noção apenas como aversão aos homossexuais, que é o entendimento
mais cotidiano da expressão, mas como um componente das relações de
gênero. Uma pessoa heterossexual ou heteroafetiva é também sujeita à
homofobia, como o é uma pessoa lésbica, travesti, bissexual, etc.,
porque a homofobia se articula às definições do que é certo e errado nas
relações de gênero e afetivo-sexuais. Refletir sobre o tema é entender
esse problema na vida social. A gente vê diversos sintomas dele no
cotidiano. Não só as pautas político-sociais vinculadas à população LGBT
(união civil, demanda por adoção etc.), como também às mulheres
(direito ao aborto, à vida sexual), por exemplo. A homofobia perpassa
todas essas relações. Então, perceber as relações entre homofobia e
jornalismo é entender o modo como essas relações são configuradas.
E de modo geral como o jornalismo tem tratado a homofobia?
Não há um padrão. Um modo geral seria uma incoerência. Há enormes
diferenças mesmo internamente nos veículos. Isso sustenta nossa
percepção de que a homofobia é um campo problemático. Veículos e
notícias se posicionam a cada hora de um jeito. Muitas vezes numa mesma
edição de um jornal impresso há um tipo de perspectiva no caderno de
cultura e outro no caderno de cotidiano. É quase como se o jornal não se
lesse. Ou entre uma edição e outra do Jornal Nacional, e até entre
blocos distintos. Às vezes imagens não estão muito coerentes com o texto
verbal. Mas é possível falar em modo geral quando lembro que em 2007,
quando começamos os testes metodológicos, praticamente não encontrávamos
a palavra homofobia. Quando o termo aparece e ganha corpo, o noticiário
aumenta. As contradições não diminuem, mas há uma tensão cada vez maior
quanto às relações LGBT e afetivo-sexuais e de gênero no cotidiano. O
aumento não implica abordagem única, pelo contrário, ela é cada vez mais
contraditória.
Pode-se mesmo imaginar que o surgimento do termo homofobia teria algum efeito...
O surgimento da palavra homofobia é sintoma e causa. É sintoma porque
reflete uma pressão da vida social, do tipo “temos um problema e ele tem
que ter um nome”. Com esse nome, se torna mais fácil produzir
histórias, apreender certas relações. E é causa porque vira um mote a
partir do qual é possível falar.
Que relações mais instigaram vocês?
Nós queríamos olhar a homofobia, mas, dentro disso, as relações LGBT,
que é o campo mais visível. É onde a homofobia ganha uma conformação
mais óbvia, ao mesmo tempo mais fácil de ser compreendida e mais
complexa. As relações LGBT foram o que mais nos instigou. Em parte
porque é uma pauta. Nesse período aconteceu o julgamento no STF sobre as
uniões homoafetivas, as tentativas de lei de criminalização da
homofobia, havia um movimento político, estético, social, cultural. E ao
longo da cobertura, alguns casos nos chamaram a atenção pela sua força,
pela sua peculiaridade. Um dos mais significativos foi o caso do
Ronaldo [ex-jogador da seleção de futebol] com as travestis. Outro foi o
dos sargentos do Exército que saíram do armário. No caso do Ronaldo,
houve claramente uma condenação moral às travestis. Elas não tiveram
voz, foram consideradas prostitutas de quinta categoria. Em momento
algum, a atitude sexual do Ronaldo foi questionada, a não ser à
meia-boca, informalmente. Preservaram o grande ídolo do esporte. Nunca
foi feita a pergunta: por que um homem hétero vai querer transar com
travestis? Por que um homem hétero, rico, que namorou várias mulheres
bonitas se interessa em transar com travestis? Essa pergunta, ou a falta
dela, diz claramente das tensões em torno do assunto. Ela diz de uma
conformação de masculinidade, do que é possível e não é de ser dito,
lugares de sombra e de luz na vida social.
E no caso dos sargentos, o que mais chamou a atenção?
Esse caso já nasceu midiático. O Ronaldo foi um caso que a mídia pegou –
e sofreu para dar conta dele. Registrou-se o fato, e aí tiveram que se
virar pra lidar com a situação. No outro caso, foi uma ação deliberada
da revista Época, que propôs a polêmica. Não só achou os dois sargentos,
como chamou-os para dar entrevista, e colocou na capa. Um conceito
básico do jornalismo é o de que existem os fatos e o jornalista narra.
No caso dos sargentos, isso caiu por terra, porque o próprio
acontecimento social foi midiaticamente produzido. O fato foi a própria
entrevista, e a partir dele todos os outros se desdobraram. Tudo que
veio depois foi repercussão desse acontecimento que nasceu midiático.
Que outros dados aparecem com destaque?
Achávamos que as questões de gênero e de sexualidade seriam basicamente
tratadas a partir do aspecto político ou da vida íntima dos famosos. Mas
isso foi em parte contradito pela pesquisa. Há uma grande força dos
casos anônimos, pequenas situações do cotidiano que pudemos capturar.
Claro que as celebridades são o grande foco, a maioria das notícias
sobre homofobia, gênero, relações LGBT se deu em torno de produtos
culturais e de pessoas famosas. Esse é um dado significativo. Não foi a
agenda política o grande tema, foi a agenda comportamental. Os segundos
cadernos trouxeram muito mais questões que os cadernos de política. E
outro aspecto foi a presença dos anônimos. Aí apareceram duas coisas.
Primeiro, algumas dessas pessoas foram transformadas em celebridades,
como os sargentos. Mas, na grande maioria das vezes, os anônimos servem à
intenção do jornal. Anônimos são protagonistas das matérias, mas não de
acontecimentos do cotidiano deles. Eles foram chamados para uma ação
midiática. Outro dado que surpreendeu: alguns movimentos fazem parte da
agenda política LGBT, como o Dia Mundial de Combate à Homofobia, as
paradas de Orgulho LGBT, o Dia Internacional de Combate à Aids. E a
gente imaginava que essas datas teriam grande cobertura, e que o
movimento social organizado teria algum tipo de penetração no
jornalismo. Não foi assim. As paradas de orgulho LGBT são organizadas
por movimentos sociais, e as matérias dos veículos em geral praticamente
não mencionam isso. Os grandes agentes são celebridades, a própria
mídia, os produtos culturais, o Executivo. Até mesmo as universidades,
os especialistas, têm mais protagonismo que o movimento social. E o
acontecimento programado não é gerador de cobertura, e isso nos
surpreendeu.
Isso vale da mesma forma para as paradas?
Elas são cobertas pelos veículos, mas os temas foram muito pouco
problematizados. O foco está na faceta divertida, na presença de
famílias e até em aspectos econômicos. A Folha fez uma matéria sobre
quanto a parada rendia, em termos econômicos, para São Paulo. As paradas
do Rio, São Paulo e Belo Horizonte tinham um tema, mas ele não foi
tratado. O Dia Mundial de Combate à Homofobia praticamente não foi
narrado. Quando o acontecimento programado garante a cobertura, não
garante a qualidade da informação. Parece que há grande dificuldade
desses dois agentes sociais conversarem. Há uma resistência dos agentes
midiáticos em darem voz ou conversarem com os movimentos organizados, e
talvez também vice-versa. É um silêncio, uma certa indiferença.
Como o jornalismo é revelado pela pesquisa?
Quando a gente fala de jornalismo, quase sempre pensa na notícia, na
relação da notícia com o acontecimento. Mas tem um elemento que
atravessa todo o processo, que é o veículo, a mídia. Os veículos não só
definem o que é pauta, como ela vai ser feita, e quem vai ser agente
dessa pauta. E essa mídia não é simplesmente o suporte, ela é um agente
social. Por exemplo, a Folha e O Globo se ancoram num discurso de
direitos humanos. Mas O Globo, até pelo caráter mais descontraído, é um
jornal muito mais comprometido, de modo geral, muito mais aberto
inclusive às contradições das questões de homofobia que a Folha. Há
claramente uma ação do Globo nessa direção, inclusive propondo e
produzindo pautas, absorvendo relações, o que a Folha faz com um pouco
mais de parcimônia. A Folha deu uma matéria em 2007 sobre a primeira
pessoa condenada com base na lei contra a homofobia de São Paulo. A
vítima foi chamada de homossexual uma vez, e no restante da matéria foi
chamada de empresário. Esse movimento de esquecer que o personagem era
homossexual e lembrar que ele era empresário é a cara da Folha. Isso diz
da notícia, do repórter, mas muito intensamente sobre o jornal: com
quem ela quer falar, como ela lê o mundo e como traduz os acontecimentos
para o que ela imagina que é o seu leitor.
Como foi a pesquisa?
Tivemos uma fase de pré-teste em 2007, em que fizemos considerações
metodológicas, laboratórios para acertar a coleta, E fizemos a coleta de
fevereiro a agosto dos anos de 2008 a 2010. E não cobrimos o ano
inteiro, porque teríamos que entregar um relatório, para o Ministério da
Saúde, com um ano de ação. Então, tivemos que parar em agosto. E
mantivemos o período nos anos seguintes para não desvirtuar a série
histórica. Esse período foi produtivo, porque pegamos após o carnaval,
que sempre gera uma cobertura peculiar. E esse período compreendia o dia
mundial de combate à homofobia e as paradas de orgulho LGBT de São
Pulo, Rio e Belo Horizonte. Juntamos muita coisa, temos um banco de
dados de mais de cinco mil itens. São muitas variáveis e elaboramos uma
ficha de análise. Todo o material está indexado, e milhares de outros
cruzamentos poderão ser feitos, em novas pesquisas.
É a primeira pesquisa desse gênero no Brasil?
Que a gente saiba, sim. A primeira que faz esse tipo de coleta
exaustiva. Foram todos os dias, todas as edições de diversos jornais e
emissoras, e com alto nível de sistematicidade. O que às vezes a gente
encontra são estudos de casos específicos, mas uma pesquisa assim, mais
larga, duradoura e compreensiva, que gente saiba é a primeira.
O tema criou dificuldades para estruturar a metodologia?
O desafio metodológico foi muito grande. A base dela é o que chamamos de
análise quantitativa. Trabalhamos com indexadores, palavras que se
repetiriam. Mas isso gera um problema, já que estamos lidando com
televisão e com imagem fotográfica. E nem tudo que está dito nos jornais
impressos e de TV está dito em palavras, muitas vezes está dito em
imagens. Além disso, nem tudo que é dito sobre homofobia ou sobre
relações afetivo-sexuais é dito explicitamente. Há implicitude,
silêncio, jogo de sentido.
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