domingo, 16 de setembro de 2012

Pesquisa sobre jornalismo e homofobia revela que movimento organizado e mídia não ‘conversam’


 
Publicado na UFMG
 
Eventos como as paradas de orgulho gay atraem cobertura de jornais e emissoras de TV, mas essa cobertura se concentra em aspectos como o exotismo das imagens e personagens e até o rendimento do evento para a economia da cidade que o abriga.
 
Os movimentos sociais que promovem os eventos não são ouvidos. “Parece que há grande dificuldade de esses dois agentes sociais conversarem. Há um silêncio, uma certa indiferença mútua”, afirma o professor Bruno Souza Leal, do Departamento de Comunicação Social da Fafich.
 
Ao lado do colega de departamento Carlos Alberto de Carvalho, ele lança neste sábado, 15, o livro Jornalismo e homofobia no Brasil: mapeamento e reflexões (editora Intermeios), que leva a público pesquisa realizada entre 2008 e 2010. Nesta entrevista, Bruno Leal conta o que a pesquisa revelou sobre as relações de gênero e afetivo-sexuais e sobre o próprio jornalismo. “Como é lugar de tensão da vida social, a homofobia diz muito dos modos de ser do jornalismo”, afirma o pesquisador.
 
Por que é importante saber sobre essa relação entre ao jornalismo e a homofobia?
 
A homofobia e as relações de gênero e as afetivo-sexuais são lugar de tensão da vida social brasileira, fazem parte de diversas realidades, das configurações identitárias, ou seja, são um campo delicado, difícil. E, consequentemente, desafiam os modos de ser do jornalismo. A partir das relações de homofobia, apreendemos aspectos ou dimensões do fazer midiático, dos modos de ser do jornalismo, que numa visada mais tradicional não conseguiríamos vislumbrar. É um bom lugar para se problematizar o jornalismo. No caso da homofobia, não trabalhamos com essa noção apenas como aversão aos homossexuais, que é o entendimento mais cotidiano da expressão, mas como um componente das relações de gênero. Uma pessoa heterossexual ou heteroafetiva é também sujeita à homofobia, como o é uma pessoa lésbica, travesti, bissexual, etc., porque a homofobia se articula às definições do que é certo e errado nas relações de gênero e afetivo-sexuais. Refletir sobre o tema é entender esse problema na vida social. A gente vê diversos sintomas dele no cotidiano. Não só as pautas político-sociais vinculadas à população LGBT (união civil, demanda por adoção etc.), como também às mulheres (direito ao aborto, à vida sexual), por exemplo. A homofobia perpassa todas essas relações. Então, perceber as relações entre homofobia e jornalismo é entender o modo como essas relações são configuradas.
 
E de modo geral como o jornalismo tem tratado a homofobia?
 
Não há um padrão. Um modo geral seria uma incoerência. Há enormes diferenças mesmo internamente nos veículos. Isso sustenta nossa percepção de que a homofobia é um campo problemático. Veículos e notícias se posicionam a cada hora de um jeito. Muitas vezes numa mesma edição de um jornal impresso há um tipo de perspectiva no caderno de cultura e outro no caderno de cotidiano. É quase como se o jornal não se lesse. Ou entre uma edição e outra do Jornal Nacional, e até entre blocos distintos. Às vezes imagens não estão muito coerentes com o texto verbal. Mas é possível falar em modo geral quando lembro que em 2007, quando começamos os testes metodológicos, praticamente não encontrávamos a palavra homofobia. Quando o termo aparece e ganha corpo, o noticiário aumenta. As contradições não diminuem, mas há uma tensão cada vez maior quanto às relações LGBT e afetivo-sexuais e de gênero no cotidiano. O aumento não implica abordagem única, pelo contrário, ela é cada vez mais contraditória.
 
Pode-se mesmo imaginar que o surgimento do termo homofobia teria algum efeito...
 
O surgimento da palavra homofobia é sintoma e causa. É sintoma porque reflete uma pressão da vida social, do tipo “temos um problema e ele tem que ter um nome”. Com esse nome, se torna mais fácil produzir histórias, apreender certas relações. E é causa porque vira um mote a partir do qual é possível falar.
 
Que relações mais instigaram vocês?
 
Nós queríamos olhar a homofobia, mas, dentro disso, as relações LGBT, que é o campo mais visível. É onde a homofobia ganha uma conformação mais óbvia, ao mesmo tempo mais fácil de ser compreendida e mais complexa. As relações LGBT foram o que mais nos instigou. Em parte porque é uma pauta. Nesse período aconteceu o julgamento no STF sobre as uniões homoafetivas, as tentativas de lei de criminalização da homofobia, havia um movimento político, estético, social, cultural. E ao longo da cobertura, alguns casos nos chamaram a atenção pela sua força, pela sua peculiaridade. Um dos mais significativos foi o caso do Ronaldo [ex-jogador da seleção de futebol] com as travestis. Outro foi o dos sargentos do Exército que saíram do armário. No caso do Ronaldo, houve claramente uma condenação moral às travestis. Elas não tiveram voz, foram consideradas prostitutas de quinta categoria. Em momento algum, a atitude sexual do Ronaldo foi questionada, a não ser à meia-boca, informalmente. Preservaram o grande ídolo do esporte. Nunca foi feita a pergunta: por que um homem hétero vai querer transar com travestis? Por que um homem hétero, rico, que namorou várias mulheres bonitas se interessa em transar com travestis? Essa pergunta, ou a falta dela, diz claramente das tensões em torno do assunto. Ela diz de uma conformação de masculinidade, do que é possível e não é de ser dito, lugares de sombra e de luz na vida social.
 
E no caso dos sargentos, o que mais chamou a atenção?
 
Esse caso já nasceu midiático. O Ronaldo foi um caso que a mídia pegou – e sofreu para dar conta dele. Registrou-se o fato, e aí tiveram que se virar pra lidar com a situação. No outro caso, foi uma ação deliberada da revista Época, que propôs a polêmica. Não só achou os dois sargentos, como chamou-os para dar entrevista, e colocou na capa. Um conceito básico do jornalismo é o de que existem os fatos e o jornalista narra. No caso dos sargentos, isso caiu por terra, porque o próprio acontecimento social foi midiaticamente produzido. O fato foi a própria entrevista, e a partir dele todos os outros se desdobraram. Tudo que veio depois foi repercussão desse acontecimento que nasceu midiático.
 
Que outros dados aparecem com destaque?
 
Achávamos que as questões de gênero e de sexualidade seriam basicamente tratadas a partir do aspecto político ou da vida íntima dos famosos. Mas isso foi em parte contradito pela pesquisa. Há uma grande força dos casos anônimos, pequenas situações do cotidiano que pudemos capturar. Claro que as celebridades são o grande foco, a maioria das notícias sobre homofobia, gênero, relações LGBT se deu em torno de produtos culturais e de pessoas famosas. Esse é um dado significativo. Não foi a agenda política o grande tema, foi a agenda comportamental. Os segundos cadernos trouxeram muito mais questões que os cadernos de política. E outro aspecto foi a presença dos anônimos. Aí apareceram duas coisas. Primeiro, algumas dessas pessoas foram transformadas em celebridades, como os sargentos. Mas, na grande maioria das vezes, os anônimos servem à intenção do jornal. Anônimos são protagonistas das matérias, mas não de acontecimentos do cotidiano deles. Eles foram chamados para uma ação midiática. Outro dado que surpreendeu: alguns movimentos fazem parte da agenda política LGBT, como o Dia Mundial de Combate à Homofobia, as paradas de Orgulho LGBT, o Dia Internacional de Combate à Aids. E a gente imaginava que essas datas teriam grande cobertura, e que o movimento social organizado teria algum tipo de penetração no jornalismo. Não foi assim. As paradas de orgulho LGBT são organizadas por movimentos sociais, e as matérias dos veículos em geral praticamente não mencionam isso. Os grandes agentes são celebridades, a própria mídia, os produtos culturais, o Executivo. Até mesmo as universidades, os especialistas, têm mais protagonismo que o movimento social. E o acontecimento programado não é gerador de cobertura, e isso nos surpreendeu.
 
Isso vale da mesma forma para as paradas?
 
Elas são cobertas pelos veículos, mas os temas foram muito pouco problematizados. O foco está na faceta divertida, na presença de famílias e até em aspectos econômicos. A Folha fez uma matéria sobre quanto a parada rendia, em termos econômicos, para São Paulo. As paradas do Rio, São Paulo e Belo Horizonte tinham um tema, mas ele não foi tratado. O Dia Mundial de Combate à Homofobia praticamente não foi narrado. Quando o acontecimento programado garante a cobertura, não garante a qualidade da informação. Parece que há grande dificuldade desses dois agentes sociais conversarem. Há uma resistência dos agentes midiáticos em darem voz ou conversarem com os movimentos organizados, e talvez também vice-versa. É um silêncio, uma certa indiferença.
 
Como o jornalismo é revelado pela pesquisa?
 
Quando a gente fala de jornalismo, quase sempre pensa na notícia, na relação da notícia com o acontecimento. Mas tem um elemento que atravessa todo o processo, que é o veículo, a mídia. Os veículos não só definem o que é pauta, como ela vai ser feita, e quem vai ser agente dessa pauta. E essa mídia não é simplesmente o suporte, ela é um agente social. Por exemplo, a Folha e O Globo se ancoram num discurso de direitos humanos. Mas O Globo, até pelo caráter mais descontraído, é um jornal muito mais comprometido, de modo geral, muito mais aberto inclusive às contradições das questões de homofobia que a Folha. Há claramente uma ação do Globo nessa direção, inclusive propondo e produzindo pautas, absorvendo relações, o que a Folha faz com um pouco mais de parcimônia. A Folha deu uma matéria em 2007 sobre a primeira pessoa condenada com base na lei contra a homofobia de São Paulo. A vítima foi chamada de homossexual uma vez, e no restante da matéria foi chamada de empresário. Esse movimento de esquecer que o personagem era homossexual e lembrar que ele era empresário é a cara da Folha. Isso diz da notícia, do repórter, mas muito intensamente sobre o jornal: com quem ela quer falar, como ela lê o mundo e como traduz os acontecimentos para o que ela imagina que é o seu leitor.
 
Como foi a pesquisa?
 
Tivemos uma fase de pré-teste em 2007, em que fizemos considerações metodológicas, laboratórios para acertar a coleta, E fizemos a coleta de fevereiro a agosto dos anos de 2008 a 2010. E não cobrimos o ano inteiro, porque teríamos que entregar um relatório, para o Ministério da Saúde, com um ano de ação. Então, tivemos que parar em agosto. E mantivemos o período nos anos seguintes para não desvirtuar a série histórica. Esse período foi produtivo, porque pegamos após o carnaval, que sempre gera uma cobertura peculiar. E esse período compreendia o dia mundial de combate à homofobia e as paradas de orgulho LGBT de São Pulo, Rio e Belo Horizonte. Juntamos muita coisa, temos um banco de dados de mais de cinco mil itens. São muitas variáveis e elaboramos uma ficha de análise. Todo o material está indexado, e milhares de outros cruzamentos poderão ser feitos, em novas pesquisas.
 
É a primeira pesquisa desse gênero no Brasil?
 
Que a gente saiba, sim. A primeira que faz esse tipo de coleta exaustiva. Foram todos os dias, todas as edições de diversos jornais e emissoras, e com alto nível de sistematicidade. O que às vezes a gente encontra são estudos de casos específicos, mas uma pesquisa assim, mais larga, duradoura e compreensiva, que gente saiba é a primeira.
 
O tema criou dificuldades para estruturar a metodologia?
 
O desafio metodológico foi muito grande. A base dela é o que chamamos de análise quantitativa. Trabalhamos com indexadores, palavras que se repetiriam. Mas isso gera um problema, já que estamos lidando com televisão e com imagem fotográfica. E nem tudo que está dito nos jornais impressos e de TV está dito em palavras, muitas vezes está dito em imagens. Além disso, nem tudo que é dito sobre homofobia ou sobre relações afetivo-sexuais é dito explicitamente. Há implicitude, silêncio, jogo de sentido.
 

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