quinta-feira, 19 de julho de 2012

"A força do casamento gay", por Walcyr Carrasco*


Publicado na Época
Dica de Augusto Martins
Há algum tempo, tive uma cozinheira que, ao ser entrevistada, declarou morar com uma amiga. Morro de curiosidade, mas tento me manter discreto a respeito da vida sexual alheia. Dei um nó na língua para não perguntar o que tinha vontade de saber:
– Amiga, é? Que tipo de amiga? Hummmm...
Como tantas palavras hoje em dia, amizade adquiriu um significado elástico. Pode ser simplesmente um relacionamento de afeto. Mas também um caso fogoso, com direito a gritos, arranhões e reconciliações dramáticas. No caso da minha cozinheira, a verdade explodiu meses depois, quando veio a separação. Ela mesma contou, em lágrimas, que eram companheiras havia quase 20 anos. A situação tornara-se crítica porque a outra não trabalhava havia muito tempo. Venderam o pequeno apartamento que tinham no centro de São Paulo. A cozinheira instalou-se em meu endereço. A ex mudou-se para uma pequena cidade do interior, na casa da mãe. Levou quase todo o dinheiro de ambas. Comprou uma casinha, em seu nome. Alguns meses depois, voltaram a se ver e a passar fins de semana juntas. Insisti várias vezes com minha funcionária:
– Você tem de garantir seu direito a esse imóvel. Pense bem. No futuro, é bom que tenha um lugar para morar. Se sua ex morrer, a herança vai para a mãe dela!
Minha cozinheira me olhava com expressão desconsolada, de quem acreditava que, por ser homossexual, não tinha direitos. Uma tristeza.
– Você é uma cidadã, tem de usar a lei a seu favor.
Abanava a cabeça, desconsolada.
Deixou o emprego sem resolver a situação. Muitas vezes pensei na injustiça desse caso e de outros semelhantes. Minha ex-cozinheira poderá passar a velhice sem um teto.
Por isso, envio meus aplausos ao lançamento de uma publicação dirigida à união gay, Momento Inesquecível. É um avanço. O Brasil já admite a União Estável, que, de acordo com a decisão judicial, pode ser transformada em casamento. Depende do juiz. Alguns processos foram vitoriosos. Outros não. A revista, anual, abrange todas as etapas da União Gay. Entre os artigos, o advogado Ricardo Brajtman, do Rio de Janeiro, explica didaticamente como realizar a união e depois vê-la reconhecida como matrimônio. Outros indicam locais para celebrar a festa, como escolher bufês, doces e lembrancinhas. E, como não podia deixar de ser, dão dicas para a lua de mel. Há até uma coluna social fotográfica, que mostra vários casamentos realizados. No do estilista Carlos Tufvesson com o arquiteto André Piva, a mãe do primeiro, Glorinha Pires Rebelo, celebrou, ela própria, a união: “Com as bênçãos de Deus e a autoridade de mãe, eu vos declaro casados em nome do amor”.
Até os bolos são anunciados com miniaturas de dois rapazes ou duas noivinhas em cima. Também há referências a religiões que, ao contrário da Igreja Católica, abençoam uniões do mesmo sexo. A famosa monja Coen, budista, por exemplo, casou duas mulheres.
É um passo para a aceitação. Por mais que a família se dê bem e assuma o companheiro de um de seus membros, na hora da herança, a grana fala mais alto (se até irmãos de sangue brigam por causa das panelas da mamãe, imagine uma situação confusa do ponto de vista da lei). Lembro um caso, há muitos anos, em São Paulo, onde um costureiro com aids foi cuidado por seu companheiro, um rapaz, até o momento final. No velório, o jovem chorava, e a família do outro tentava consolar. De madrugada, o rapaz voltou ao apartamento para trocar de roupa. As fechaduras haviam sido trocadas pelos irmãos do falecido! Só após um longo processo, onde provou ter contribuído para a formação do patrimônio, o rapaz pode voltar a ter casa e conseguiu reaver parte de seus bens.
Sempre acreditei que quando duas pessoas se amam, hétero ou homossexuais, o casamento é um detalhe dispensável. Talvez eu tenha sido rígido demais. As pessoas precisam de símbolos para viver. Quando uma união entre dois homens ou duas mulheres é revestida por todo o aparato de um casamento tradicional, incluindo bolo com noivinhos, a ideia parece ser melhor absorvida. A discussão se é certo ou errado fica ultrapassada quando o fato já é isso, um fato.
Momento Inesquecível mostra que, embora do ponto de vista judicial o país ainda patine, a União Estável veio para ficar, e o casamento gay, mais dia menos dia, virá também. Mais que isso: se tornará tão comum quanto qualquer outro. Ainda bem. Mesmo porque não resisto a uma festa e espero ser convidado para muitas.
* WALCYR CARRASCO é jornalista, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão

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