Visto na Folha
Por Mariana Versolato
A cabeleireira aposentada Andréia Ferraresi, 68, de São Paulo, é a
transexual mais velha do país a fazer uma cirurgia para troca de sexo.
Registrada ao nascer como Orlando, ela esperava pela operação desde
1979, quando recebeu o diagnóstico de transexualidade. Sem dinheiro para
pagar pelo procedimento, teve que aguardar até que a cirurgia fosse
feita no SUS. Foi operada no dia 27 de fevereiro, no HC. Leia o
depoimento concedido por ela à Folha.
"Sofri muito na vida por um conflito de identidade e esperei por essa
cirurgia desde 1979, quando procurei o HC e recebi o diagnóstico de
transexualidade.
Na época, o SUS não fazia a cirurgia. Quem fazia eram os médicos
particulares. Fui a dois e me cobraram um preço exorbitante. Minha mãe
disse que não tinha dinheiro e eu entendi. Ela já sofria, se sentia
culpada por mim.
Sou a caçula de 11 irmãos e todos eram "normais". Os irmãos que nasceram
pouco antes de mim eram homens e minha mãe queria que a última fosse
menina. E nasceu uma menina, mas com os órgãos que os outros tinham.
O sofrimento sobrou para mim, com "bullying" na escola e aquele conflito de você sentir uma coisa e não ser o que você sente.
Na infância, só brincava com as meninas. Um dia, no colégio, ganhei uma
boneca na rifa e os meninos falaram: "Mariquinha, mariquinha!". Eles
pensavam que estavam me ofendendo, mas quanto mais falavam mais orgulho
eu sentia da boneca.
Com 14 anos, peguei o vestido da minha irmã. O povo dizia que tinha
caído certinho em mim. Minhas vizinhas me deram saias e comecei a usar
roupa de mulher.
Quem aceitou mais foi minha mãe. Ela sempre quis me proteger. Mas meu
pai e um irmão me perseguiram até eu fazer os exames que provaram que eu
era transexual.
Quando saiu o diagnóstico me pediram até perdão. É muito ruim você se sentir reprimida pela própria família.
Ainda teve o regime militar. Os transexuais sofreram demais com
perseguições policiais. Cheguei a ficar um mês na prisão, mas o juiz me
soltou. Viram que eu não tinha perigo nenhum, nunca fui criatura de
beber, de vida fácil. Sempre tive meu trabalho de cabeleireira.
O tempo foi passando até que encontrei o CRT [Ambulatório para Saúde
Integral de Travestis e Transexuais do Centro de Referência e
Treinamento em DST/Aids], em 2009. Quando cheguei, estava numa depressão
fora do comum, um trapo.
Comecei o tratamento com o psiquiatra, tomei remédios por um ano e fui
encaminhada para a operação. Sou a primeira do ambulatório a fazer a
cirurgia e vou abrir a porta para muitas que precisam.
IDADE
O povo dizia: "Mas não é um pouco tarde para você fazer a cirurgia?". E
eu respondia: "Não, eu ainda preciso viver, não vivi minha vida! Estou
começando só agora".
Eu tenho idade de vovó, mas me sinto forte e feliz. A velhice está na
cabeça das pessoas. Os homens, quando passam por mim na rua, falam:
"Quanta saúde!".
Se eu puder pegar um forrozinho, eu vou, faço dança do ventre. Um médico
me disse: "Do jeito que está indo, a senhora vai viver uns 95". E eu
disse: "Quero viver ainda mais, doutor!".
A cirurgia mudou tudo. Esqueci aquele passado de sofrimento. O que interessa agora é daqui pra frente.
Fiquei muito satisfeita com o resultado. Não tem uma cicatriz. Parece que eu nasci assim. Estou até me sentindo mais bonita.
Já uso o nome Andréia Ferraresi porque um juiz me deu autorização, mas
agora está correndo o processo de mudança de sexo também no registro.
Quero que aconteça rápido porque preciso casar, preciso de um amor.
Estou solteira, mas a minha felicidade é tanta que namorar é coisa
secundária. Quero um amorzinho, mas com o pé no chão. Ficar na vida
promíscua eu não quero, porque hoje em dia a doença venérea está demais.
Eu transava bastante quando era mais nova e não tinha Aids. Era um tempo
bom. Pena que não vivi integralmente com essa periquita (risos).
Hoje me valorizo mais. A vida não se resume em sexo. Não é porque fiz a
cirurgia que vou ficar no oba-oba. Eu fiz para mim, para a minha
identidade, para me olhar no espelho e ver que sou mulher, não ver
aquela coisa estranha que não estava combinando.
A cabeça da gente muda quando sai da mesa de operação. Ela elimina o que
você tem de transtorno na sua cabeça. Fui solta de uma gaiola que me
aprisionou por todos esses anos.
Hoje, a passarinha está voando, solta, feliz da vida. Os problemas
parecem não ter o tamanho que tinham. Antes pensava que se não consegui
um emprego era por causa de preconceito.
Hoje dou uma banana pro preconceito. Só importa que estou feliz da vida, mostrando que idade não tem nada a ver."
Nenhum comentário:
Postar um comentário