segunda-feira, 2 de abril de 2012

Um apartheid para os gays


Visto na Época
A presidente reeleita da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf, dividiu com outras duas mulheres o Prêmio Nobel da Paz de 2011 por sua luta pela emancipação feminina. O mundo inteiro aplaudiu. Única mulher a comandar um Estado africano até hoje, Sirleaf, de 73 anos, foi vista como uma governante africana diferente, sensível a grupos discriminados. Ou melhor, a nem todos os discriminados.
Há duas semanas, em entrevista ao jornal The Guardian, ao lado do ex-premiê britânico Tony Blair, Sirleaf defendeu a prisão de “praticantes de atos homossexuais”, como estabelece a legislação da Libéria. “Temos certos valores tradicionais em nossa sociedade que gostaríamos de preservar”, afirmou, diante de um inerte e surpreso Blair, que se limitou a falar de projetos de governança de sua ONG para o país.
A declaração soaria mais adequada na boca de algum ignóbil ditador africano, como Robert Mugabe, do Zimbábue. Há um mês, Mugabe afirmou que os gays são “piores que porcos e cachorros, porque eles sabem que existem machos e fêmeas”. Mas Sirleaf é uma líder respeitada, conhecida exatamente pela luta no campo dos direitos humanos. Sua posição revela que a perseguição aos homossexuais é hoje uma triste realidade africana.
Nada menos que 38 dos 54 países do continente têm algum tipo de legislação que criminaliza a homossexualidade (leia o quadro abaixo). As sentenças variam de um a dez anos de prisão e podem chegar à pena de morte, como na Mauritânia, no Sudão e em regiões da Somália e da Nigéria. Na Libéria da vencedora do Nobel da Paz, a “sodomia voluntária” é considerada delito passível de até um ano de cadeia. Legisladores liberianos consideram a pena branda, e dois projetos propõem aumentá-la. Na capital, Monróvia, seis ataques deixaram oito gays feridos nos últimos seis meses. Mesmo em países sem leis antigays, o tratamento dispensado a eles é marcado por ódio e preconceito. Um exemplo é a África do Sul, onde é comum a ocorrência do “estupro corretivo”, violência sexual praticada com a intenção de “curar” a homossexualidade de uma vítima.
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A homofobia está presente tanto na África árabe e muçulmana quanto na negra e cristã, além de ganhar terreno com o avanço evangélico no continente. Pastores ficaram célebres nos últimos meses por discursos contra a prática homossexual na Libéria, na Nigéria e em Uganda. Alguns chegam a exibir filmes pornográficos gays nos cultos para comprovar a “bestialidade” da prática. Além da influência religiosa, há uma crença de que a homossexualidade é um hábito trazido pelos colonizadores europeus – daí a lógica de Ellen Sirleaf de preservar “certos valores tradicionais”.
A antropóloga nigeriana Ifi Amadiume, autora de uma dezena de livros sobre a sexualidade no continente, considera esse discurso uma mistura de má-fé com desconhecimento histórico. “É uma forma de escapismo hipócrita: relações homossexuais sempre estiveram presentes em etnias e tribos africanas”, afirma. Antes da colonização, muitas sociedades praticavam atos homossexuais. No Lesoto, homens casavam-se com mulheres apenas para procriar, e a relação com outros homens era um passatempo. Algumas nigerianas podiam se casar com mulheres. No Zimbábue, acreditava-se que o sexo entre homens trazia poderes divinos. “A ironia é que muitas das leis que garantem a ilegalidade dos gays são heranças do período colonial”, diz o americano Andre Banks, diretor executivo da All Out, uma ONG que defende os direitos dos gays, bissexuais e transgêneros.
A comunidade internacional tem aumentado o tom das críticas à homofobia africana. Há dois meses, a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, disse que pode condicionar o auxílio financeiro a algumas nações do continente a reformas políticas que deem mais liberdade aos gays. O premiê britânico, David Cameron, ameaçou fazer o mesmo. Pelo episódio envolvendo Ellen Sirleaf, percebe-se que os líderes africanos não estão dispostos a ouvir conselhos de fora sobre o assunto. Que o diga John Nagenda, o principal conselheiro do ditador de Uganda, Yoweri Museveni. Ao ser questionado pela BBC sobre as declarações de Hillary e Cameron, ele disse: “Se pensam que podem nos dizer o que devemos fazer, podem ir para o inferno”. Se a nova batalha da diplomacia ocidental na África for pelos gays, não será nada fácil. 

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