Por São José de Almeida - (sao.jose.almeida@publico.pt) – direto de Portugal
Dica de Augusto Martins 
Visto no Porto Gay
O Estado Novo dizia que não havia homossexuais, mas perseguia-os
Oficialmente não se podia ser. No discurso nem sequer existiam. Mas 
na prática era comum. Quer para o povo, assíduo dos urinóis, estações e 
docas, preso e humilhado pela polícia; quer para as elites sociais e 
culturais que viviam a sua sexualidade numa semitolerância envergonhada e
 claustrofóbica.
No Estado Novo podia-se ser homossexual, mas não se podia dizer. Nem 
no mundo da alta sociedade, dos “marqueses” e das festas com 
homossexuais nas casas particulares. Nem no mundo dos bares e dos 
clubes, no mundo da rua, dos engates nos urinóis, nos jardins e nos cais
 e estações, na homossexualidade do bas-fond. A distinção entre estes 
dois mundos surgia quando se era apanhado: os protegidos do regime eram 
poupados, os outros eram internados, espancados, humilhados.
Como era ser homossexual no Estado Novo? Como era viver no reino do 
não dito e do semipermitido? As respostas encontradas pela Pública – com
 a ajuda de estudiosos e de homossexuais que viveram sob estes anos de 
chumbo, alguns dos quais ainda hoje aceitam apenas falar sob anonimato –
 revelam um quadro repressivo feroz para a generalidade dos homossexuais
 apanhados pelas rusgas da polícia e uma permissividade calada, que 
ignora, ou finge que não existe, a prática por uma elite que, pelo seu 
estatuto social, está acima da moral e sobretudo da lei. “Não se fala e 
não existe. A regra é esta. A homossexualidade era o segredo que toda a 
gente sabia. E, como toda a gente sabia, ninguém dizia”, afirma António 
Fernando Cascais, professor universitário e um dos mais antigos 
activistas da defesa dos direitos dos homossexuais em Portugal.
“Há um tratamento diferente de acordo com a classe social, uma 
diferenciação de tratamento que vem de antes e que se intensifica com o 
Estado Novo”, explica Cascais, que tem a mais completa base de dados 
sobre História da homossexualidade em Portugal: “Normalmente, as classes
 mais baixas – que são arrebanhadas na rua – são humilhadas nas 
esquadras e espancadas em público, passeadas nas ruas, postas a lavar o 
chão. Já para as famílias das elites há um sentimento de permissividade,
 de serem vistos como pessoas que não têm de partilhar da moral comum, a
 moral burguesa.”
Havia, pois, liberdade para quem tinha estatuto social e dinheiro. 
“Nós tínhamos dinheiro para pagar e para fazer muita coisa – pagar o 
silêncio da sociedade e pagar o silêncio da polícia”, assume António 
Serzedelo, professor reformado e dirigente da Opus Gay, que em Maio de 
1974 foi co-autor, com amigos de Lisboa e do Porto – entre os quais o 
sociólogo José António Fernandes Dias – do manifesto Liberdade para as 
Minorias Sexuais, do Movimento de Acção dos Homossexuais Revolucionários
 (MAHR).
Lei sem nome
A lei era clara. A homossexualidade começou a ser punida pelo Código 
Penal a partir da revisão de 1886, através dos artigos 70.º e 71.º, que 
perdurarão quase 100 anos – até 1982. Sem nunca mencionar a palavra, 
prescreve-se que aos que “se entreguem habitualmente à prática de vícios
 contra a natureza” passam a ser “aplicáveis medidas de segurança”, como
 o “internamento em manicómio criminal”, “internamento em casa de 
trabalho ou colónia agrícola”, “liberdade vigiada”, “caução de boa 
conduta” e “interdição do exercício de profissão”.
A condenação da homossexualidade vai ser apertada através das leis. A
 “lei de Julho de 1912 apresentava uma definição de ‘vadio’ próxima da 
do Código Penal e que especificava que se aplicava ao homossexual”, 
escreveu a antropóloga e professora universitária Susana Pereira Bastos 
em O Estado Novo e os Seus Vadios (Dom Quixote, 1997). Uma determinação 
que passará a ser aplicada em 1945 pelos Tribunais de Execução de Penas.
A Mitra, criada em 1933 para receber mendigos e vadios, é o lugar de 
internamento de muitos dos homossexuais apanhados pela polícia – isso 
durou até 1952, quando foi transformada em instituição parapsiquiátrica.
 Outro lugar era a Colónia de Trabalho do Pisão, segundo Susana Pereira 
Bastos. Cascais refere que muitas mulheres homossexuais foram 
“deportadas dentro do país para Castro Marim”.
Contra a “corrupção literária”
Na década de 1920, há na Europa, sobretudo na Alemanha, a “expressão de 
uma cultura homossexual literária e uma discussão científica sobre a 
homossexualidade” que em Portugal é acompanhada pelas “elites sociais e 
culturais”, diz Cascais. Mas o vanguardismo literário português vai ser 
cortado ainda antes do 28 de Maio de 1926 – golpe de Estado, liderado 
por Gomes da Costa, que inicia os 48 anos da ditadura portuguesa e que 
levará Salazar ao poder – por um movimento que anuncia o esteio cultural
 e mental de adesão ao salazarismo.
Liderada por Pedro Theotónio Pereira, a Liga de Ação dos Estudantes 
de Lisboa, movimento católico criado em 1923, consegue que o Governo 
Civil interdite os livros de poesia homossexual de Judith Teixeira 
(Decadência), António Botto (Canções) e Raul Leal (Sodoma Divinizada). A
 polemica levará a ostracismo destes três poetas.
Raul Leal vivia em Paris, mas António Botto e Judith Teixeira foram 
perseguidos. Botto foi demitido da função pública e acabou por fugir 
para o Brasil com a mulher, que no Rio de Janeiro o acompanhou até ao 
fim. Doente, sofrendo delírios da sífilis, morreu na miséria em 1959. 
Cascais recorda que a sua pobreza era tal que “comia farinha com água”. O
 poeta tentou, por todos os meios, voltar a Lisboa, ao ponto de escrever
 ao cardeal Gonçalves Cerejeira, chefe da Igreja católica portuguesa, 
dedicando-lhe o poema Fátima e oferecendo a letra do hino do 13 de Maio,
 o Ave, Fátima.
Judith Teixeira, por sua vez, foi gradualmente remetida ao absoluto 
silêncio até morrer, também em 1959, mas em Lisboa. Foi ainda mais 
maltratada do que Botto ou Leal, diz a historiadora Alice Samara. 
“[Fernando] Pessoa, no texto que escreve em defesa dos dois, não fala 
dela.” A crítica que lhe é feita, à época, “é política e não literária”.
Essa ferocidade tem uma razão: “É uma mulher que quebra o pudor e afronta o homem. Até Marcello Caetano escreveu contra ela.”
A partir daí e durante décadas, a homossexualidade exprime-se na 
literatura de forma cifrada, críptica: “Ninguém queria ter a sorte de 
Botto e de Teixeira”, diz Cascais. “O próprio Eugénio de Andrade disse 
que não queria pagar em vida o que Botto pagou.”
Este quadro de autocensura nas artes só é quebrado pela geração dos 
surrealistas e por figuras como Mário Cesariny e Natália Correia, que, 
diz o professor e activista, “reconquistam uma liberdade para a 
homossexualidade que se amplia na geração de Ary dos Santos e mais ainda
 na geração de antes do 25 de Abril”. Essa recuperação de espaço de 
criação homossexual é também construída pela poeta Manuela Amaral, 
lembra Maria Andrade, responsável pela antiga revista lésbica Lilás.
“As artes estavam sujeitas a uma censura férrea e os homossexuais era
 onde mais ferozmente incidia a censura, isto desde que a expressão 
artística não estivesse ligada ao regime”, prossegue Cascais.
Mas “há pessoas que furam essa censura”.
Um deles é o actor e declamador João Villaret, que “expressa 
subtilmente a sua homossexualidade fazendo homenagem e recuperando para a
 sociedade portuguesa a poesia de António Botto, com o argumento de que 
quem lhe tinha aberto o caminho da declamação tinha sido Botto.”
Intocáveis do regime
Mas se a moral de Theotónio Pereira passa a ser a bitola para a maioria 
da sociedade, entre os que não eram perseguidos pela polícia estavam os 
apoiantes do regime. “Havia gente reconhecida pelo regime que vivia a 
sua homossexualidade em privado”, diz Cascais.
O caso mais exemplar e apontado por vários dos entrevistados da 
Pública, entre os quais o dirigente do PCP Ruben de Carvalho, é o do 
secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros durante o 
consulado de Salazar, Paulo Rodrigues. Mas há mais casos. Cascais lembra
 Virgínia Vitorino. “Nos anos 1930, ela escrevia uma poesia subtil, era 
dos autores mais vendidos e tinha um programa na rádio com audiência, 
onde fazia a apologia do regime, nomeadamente nas peças de teatro. E 
ninguém lhe tocava.”
Também a intelectual e escritora Edith Arvelos “nunca foi 
incomodada”, sublinha Cascais. O escritor Eduardo Pitta conta que ela 
viveu em Moçambique com a cantora italiana Wanda del Ré e que depois de 
se separar veio para Lisboa e viveu em casa da escritora Fernanda de 
Castro, de quem escreveu as memórias. A própria “Fernanda de Castro e 
António Ferro eram um casal maldito pelas suas relações, mas eram 
protegidos porque eram do regime”, diz Cascais.
O investigador explica que “o círculo de amizades de Fernanda de 
Castro, onde Natália Correia se inicia ainda jovem nas lides literárias e
 que se juntava, por exemplo, em férias no Algarve, era claramente um 
círculo de relações homossexuais”.
Cascais lembra “que a homossexualidade e a bissexualidade era uma 
coisa consentida e vivida em certos meios intelectuais com normalidade”,
 e como prova aponta “uma entrevista do jovem [ainda jornalista] António
 Ferro, para o Diário de Notícias, feita em Paris à escritora Collette, 
em que, escreve ele, ela acabou a conversa à pressa porque tinha de ir a
 uma festa ter com uma menina que não podia perder”. Ou seja, “há um 
lado de integração da homossexualidade no regime e de promoção de 
homossexuais pelo regime, nomeadamente pelo Secretariado de Propaganda 
Nacional do mesmo António Ferro, sendo o cineasta Leitão de Barros um 
caso notório”.
A repressão de Egas Moniz
Ainda que existisse nas vanguardas culturais e nas elites certa 
abertura, ao quadro legal repressivo somava-se uma ciência ao seu 
serviço para enquadramento ideológico.
“Não tivemos um Magnus Hirschfeld [cientista alemão defensor dos 
direitos dos homossexuais que viveu entre 1868 e 1935]“, diz Cascais, 
para quem “a ciência portuguesa é conservadora, é a ciência da repressão
 e da medicalização – veja-se o caso de Egas Moniz”. Foi o Nobel da 
Medicina quem, em Portugal, doutrinou as teorias médicas que definiram a
 homossexualidade como doença. É esta escola que será seguida e 
aprofundada por Arlindo Camillo Monteiro e Asdrúbal António de Aguiar, 
do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, que estudam “casais lésbicos 
do povo, em que um dos membros assume um género masculinizado”, revela 
Paulo Guinote, autor do blogue A Educação do Meu Umbigo, na sua tese de 
mestrado Quotidianos Femininos (1900-1933).
Perante a homossexualidade, e mesmo nas elites, o tratamento 
psiquiátrico e os choques eléctricos são prática comum. “O caso mais 
célebre é o do bailarino Valentim de Barros, que morreu nos anos 1980, 
no Hospital Miguel Bombarda, onde viveu quase 50 anos”, depois de ter 
sido internado em 1938. Este é um claro caso de repressão médica sobre 
alguém com mudança de identidade de género – Valentim Barros era 
travesti no dia-a-dia. “Uma maneira de expressar a homossexualidade é 
fazer travesti, fi caram famosos os travestis de Irene Isidro”, lembra 
António Cascais.
A repressão é assim enquadrada pelo discurso da “verdade científica” 
garantido por alguns médicos. No fundo, a ciência serve também a 
ideologia. “A homossexualidade é subversiva para o Estado Novo porque 
foge à norma”, diz Maria Andrade, da revista Lilás. Põe em causa um 
pilar da sociedade burguesa concebida pelo salazarismo. “De um modo 
diferente do rufião, o homossexual subvertia igualmente os valores de 
honra masculinos, confundia as identidades de género, perturbava os 
códigos que geriam as relações entre os dois sexos, recusava a 
instituição familiar, o pilar do Estado Novo”, explica Pereira Bastos.
“Mas isso existe?”
Com as mulheres, a construção ideológica de reprovação não era 
diferente. Diz Paulo Guinote que a homossexualidade feminina 
“significava a destruição dos principais papéis que a sociedade 
reservava à mulher: os de esposa e mãe”.
Esta concepção ideológica do Estado Novo vai-se tornando cada vez 
mais estigmatizante devido ao papel social secundarizado da mulher. “Até
 à década de 70, a mulher não tem prazer sexual e estava à disposição do
 prazer sexual do homem, então como podiam ter prazer entre elas? As 
mulheres que tinham prazeres eram de mau porte”, sintetiza Serzedelo 
para explicar o silêncio absoluto que caía sobre o lesbianismo em 
Portugal e que se foi agravando. Maria Andrade exemplifica com o caso da
 poeta Alice Moderno que vivia com Maria Evelina de Sousa, “relação que 
era pública e com os anos foi apagada”. Um silenciamento que é confi 
rmado por Guinote: “Havia poucos casos públicos em Portugal, era 
considerado um hábito de elites e havia até quem apontasse relações 
lésbicas à Rainha Dona Amélia”, conta.
A estigmatização do lesbianismo leva mesmo a que as mulheres não 
sejam presas por serem lésbicas. “Quando havia festas, havia rusgas, mas
 não havia criminalização do lesbianismo.
As mulheres eram presas porque tinham peças de roupa masculina”, 
explica Maria Andrade. Paulo Guinote acrescenta que as lésbicas em que 
havia assunção de mudança de género e em que era manifesta uma 
identidade masculinizada eram presas por “uso de roupa do sexo oposto, 
uso de nome suposto e porte de documentação falsa”.
A jurista Teresa Pizarro Beleza sustenta mesmo, num texto divulgado 
no PÚBLICO (21/07/1999), que “a lei ignorou a homossexualidade feminina 
provavelmente pelas mesmas razões que a Rainha Vitória (‘mas isso 
existe?’, perguntou ela) – porque ela é, nos quadros que vêm do 
moralismo oitocentista, o inominável.
Ainda que a expressão legal pudesse abranger gramaticalmente a 
homossexualidade feminina, a jurisprudência entendeu-a sistematicamente 
como dizendo respeito à masculina”.
O medo
É esta interpretação de “desvio” à ordem do salazarismo que leva a que a
 maioria dos homossexuais que caem nas malhas da polícia sejam 
internados, espancados e humilhados. Por isso, o medo da denúncia é uma 
constante até 1982, quando ser homossexual deixa de ser crime em 
Portugal. “Havia uma vigia constante em cima das pessoas, tínhamos medo 
desde a PIDE à vizinha do lado. Se uma vizinha não gostava de nós, 
denunciava-nos; as pessoas denunciavam para satisfazer ódios. Houve 
casos extremos, sei de uma actriz portuguesa que foi à polícia denunciar
 o filho”, garante o artista plástico Óscar Alves, hoje com 74 anos.
O medo tinha razões reais, como a chantagem. “Se a polícia aparecia e
 prendia, pagava-se e o processo desaparecia”, lembra Serzedelo, que 
concretiza: “Havia dois tipos de chantagem: a dos processos não 
avançarem e, para o povo, havia a pressão do Pisão, da Mitra e da 
cadeia, ou então aceitavam ser humilhados e escravos sexuais da 
polícia.”
A chantagem policial era uma realidade constante e os homossexuais 
ouvidos pela Pública, que eram jovens no Estado Novo e pediram para não 
ser identificados, contam que era praticada até sobre a elite, como 
aconteceu com João Villaret e Leitão de Barros.
“Ser homossexual declarado era impossível nos anos 50″, garante Óscar
 Alves, porque “os homens eram perseguidos pela polícia e 
identificados”. Autor da tese de mestrado Do Acto à Identidade: 
Orientação Sexual e Estruturação Social, Octávio Gameiro refere que 
Mário Cesariny foi várias vezes preso em rusgas a urinóis e sujeito a 
humilhações da polícia. Também Yolanda Gonçalves, professora 
universitária reformada e co-fundadora da Ilga, relata que o seu tio, 
Mário Gonçalves, bailarino do Verde Gaio, foi preso. “Muitas vezes foi 
apanhado nas casas de banho públicas dos jardins, onde os agentes à 
paisana fingiam andar no engate.”
A polícia “aparecia de repente e chateava e prendia”, relembra Óscar 
Alves, dando como exemplo as “festas em casas particulares”, onde, 
quando a polícia entrava, iam todos presos. “Era fatal.”
Este medo condicionava comportamentos.
“A repressão e a auto-repressão” impediam os homossexuais que “tinham
 relações de noite de se cumprimentarem quando se cruzavam na rua de 
dia”, conta Serzedelo.
A excepção era a elite da sociedade de Lisboa e do Porto. O 
ex-corredor de automóveis Nicha Cabral, 75 anos, declara: “Nunca senti 
que fosse incomodado pela polícia. Eu achava que era normal o que fazia…
 homossexualidade, bissexualidade, nunca achei que fosse desvio, vivi 
sempre num meio não homossexual. Tinha um grande amigo, o actor Paulo 
Renato, um homem superiormente inteligente, que pensava exactamente como
 eu e que eu saiba ele não se sentia perseguido.”
O caso Burnay
Mas a aparente liberdade em que se movia a elite social não dava aos 
homossexuais direitos. O caso de Carlos Burnay, de 24 anos, membro de 
uma das famílias influentes da época, ficou como um símbolo da 
discriminação do Estado Novo. Por mais que Ana Maria Burnay movesse 
influências, o assassino do seu filho Carlos nunca foi encontrado – no 
auto de ocorrências, a polícia escreve claramente que Carlos Burnay era 
homossexual e dava festas para homossexuais.
Óscar Alves recorda o clima que se instalou após Burnay aparecer 
morto com um tiro de pistola na cabeça, na manhã seguinte a ter dado uma
 festa numa das casas que a sua mãe tinha em Cascais. “Fui convidado mas
 não fui ao baile do Carlos Burnay, ele dava festas com homossexuais. O 
assassínio dele deu muito que falar e nunca se descobriu. Eu estava no 
[teatro] Monumental e o Rogério Paulo foi convidado e foi. Com medo do 
escândalo, casou à pressa. Ele não era homossexual, mas com medo casou 
com a rapariga com quem estava.”
Se o medo dos homens era assim, na sociedade patriarcal portuguesa o 
medo das mulheres era ainda maior. Óscar Alves explica que, mesmo na 
elite, as mulheres, que se soubesse, eram poucas.
“Havia a Natália [Correia], as histórias dela eram com mulheres, 
havia umas grandes amigas dela que conheci naqueles anos 60″, recorda. 
“Outra mulher assumidíssima era a Maluda, que tinha uma grande amizade 
com a Amália, mas a Amália não era.” Acrescentando: “Havia a Luzia Maria
 Martins e a Helena Félix, que eram conhecidas, e a Irene Isidro, que 
fazia aqueles travestis. A mim disse-me ela muitas vezes: ‘Tenho medo’.”
Numa entrevista feita sob pseudónimo e publicada no n.º 3 da revista 
Lilás, em 1993, uma mulher identificada como Peres relata: “Nos anos 50,
 era tudo à socapa, íamos de carro dar umas voltas por aqui e ali. Havia
 festas particulares.” Já Marita Ferreira, autora do blogue Tangas 
Lésbicas e co-fundadora da Ilga, explica que, mesmo nos anos 70, o 
desporto era uma forma de as mulheres assumirem e viverem o lesbianismo 
sem serem incomodadas: “Praticar desporto era uma forma de poder ter 
relações com raparigas e dormir no mesmo quarto.”
A discriminação das lésbicas era tal que, muitas vezes, eram os 
próprios homossexuais homens a fazerem-na. “Havia discriminação” e “as 
duas comunidades, gay e lésbica, não se cruzavam. As mulheres eram 
recatadas”, diz Serzedelo.
“E, embora houvesse uma ou outra que era presa por denúncia, eram raras.”
Espaços públicos
Este era o mundo privado dos homossexuais durante o Estado Novo. Mas 
também havia um público. Os lugares de encontro foram evoluindo ao longo
 das décadas. Inicialmente, frisa Cascais, “não havia bares para 
homossexuais, as pessoas encontravam-se clandestinamente em espaços 
públicos”.
Óscar Alves lembra que sempre houve festas particulares até ao 25 de 
Abril de 1974 e destaca que quando chegou a Lisboa, vindo do Porto, no 
início dos anos 50, “ia às festas de um senhor de alta sociedade, Ayres 
Pinto da Cunha, que às quintas-feiras recebia homossexuais e artistas”.
Além do mundo dos salões da classe alta, os intelectuais começaram 
nos anos 60 a viver a sua homossexualidade com mais naturalidade. Mas 
mesmo nos grupos mais libertários havia diferenças de atitude, salienta.
 “No grupo surrealista, havia uns que não queriam que se soubesse, mas 
havia também o Cesariny que era assumidíssimo, dentro do que podia ser 
na época.” Óscar Alves serve-se precisamente da figura de Cesariny para 
explicar a diversidade da época. “O Cesariny não se dava com 
intelectuais, não gostava, gostava de se dar com pessoas do povo. Havia 
um grupo, em que o Cesariny andava, que gostava de marinheiros e não 
aparecia nos locais onde os outros intelectuais se juntavam. O Cesariny 
estava sempre na Reimar, que era mais povo e mais bas-fond.”
Era na Cervejaria Reimar, na Rua do Telhal, em Lisboa, conta 
Serzedelo, que se juntavam figuras como “o Cesariny e o Ary” e “onde se 
misturava a elite e o povo homossexual”. E era um lugar onde “havia 
liberdade de se sentarem ao colo e fazerem carícias”.
Em Lisboa, os cafés Monte Carlo e Monumental, o Tony dos Bifes, “a 
Pastelaria Paraíso, na Avenida Alexandre Herculano, onde parava o 
escritor Bernardo Santareno”, a Suíça e a Brasileira no Chiado são 
locais de encontro de homossexuais, segundo Serzedelo e Óscar Alves.
Já no Porto, “não havia nada”, garante Óscar Alves, que conta como 
era ser homossexual no Porto, no final dos anos 40. “Eu trabalhava no 
Teatro Experimental do Porto com o António Pedro, que não era 
homossexual, e o Vasco de Lima Couto. Íamos ao Café Rialto, na Sá da 
Bandeira. Eu, enquanto estive no Porto, tomava todos os dias café com o 
Pedro Homem de Mello e com o Vasco de Lima Couto. Eles eram assumidos, 
toda a gente no Porto sabia, mas não se falava.”
Este artista plástico salienta o ambiente fechado da sociedade 
portuense na época: “A única pessoa que tinha coragem de não se retirar 
se lhe atirassem alguma boca era o Eugénio de Andrade. No Pedro Homem de
 Mello também não se atreviam a tocar. O Vasco de Lima Couto sofria 
muito, mas também não se poupava. Era difícil. Por isso fugi para Lisboa
 em 1952, para a aviação militar.”
Quanto a lugares de encontro nocturno no Porto, Óscar Alves diz que 
só havia o Jardim da Cordoaria e o Castelo do Queijo. Já em Coimbra, o 
local de engate, segundo Serzedelo, era o Jardim da Sereia. E em Lisboa 
havia variados jardins e locais públicos. “Os grandes centros de 
encontro eram os urinóis, as estações de caminho-de-ferro, os jardins, 
os cais de desembarque da outra margem, o Cais do Sodré, onde chegavam 
os marinheiros do Alfeite”, conta Serzedelo. “Os senhores estavam lá com
 bons carros. O vocabulário era dissimulado. Dizíamos ‘as gaivotas’ para
 os marinheiros e ‘as doroteias’ para os soldados.”
Quanto aos urinóis, “os dois principais eram o do Campo das Cebolas e
 o do Campo Pequeno”, em Lisboa, conta Serzedelo, referindo ainda que, à
 época, “os jardins eram seguros em relação à polícia e não tinham 
prostituição”. O Parque Eduardo VII era frequentado para encontros, uma 
das formas, naqueles anos, de um homossexual conhecer outro. “A zona da 
Estufa Fria era onde ia, por exemplo, o [maestro] Lopes Graça”, lembra 
Serzedelo. “O Campo Grande era outro jardim frequentado por causa dos 
estudantes das universidades de dia e de um quartel que havia ali, à 
noite.” E Belém, zona de quartéis e onde “havia muito engate de carro”.
Locais de engate
É num contexto de encontros de rua sujeitos à violência da polícia que 
surge, em Lisboa, o Bar Z, no Príncipe Real, onde hoje é o Harry’s. Este
 bar, conta Serzedelo, “foi montado por um administrador da Carris, que 
era inglês e tinha um amante chamado Zé (daí o Z), para ele se encontrar
 com os seus amigos, longe da polícia.
Ao princípio era um clube fechado. O porteiro, o Armando, acabou por 
abrir muito mais tarde, depois do 25 de Abril, o Finalmente”.
Na ausência de lugares exclusivos, os homossexuais frequentavam os 
lugares da moda. Assim, além das casas de fado, Óscar Alves e Serzedelo 
lembram locais como a boîte da aristocracia, o Ad-Lib, ou o menos 
aristocrático Galo no Parque Mayer, o Barbarella, ao fundo da Rua da 
Atalaia, o Insólito, o Antiquário, no Príncipe Real, o Memorial, que 
abriu e fechou sob os nomes de Gato Verde e Gato Preto, e que foi o 
primeiro bar a fazer matinés para lésbicas. Até que José Filipe Vilhena 
abre o Bric à Bar, um dos lugares míticos dos roteiros da noite 
homossexual do final do Estado Novo, diz António Serzedelo, 
acrescentando que este bar “teve a primeira mulher porteira que ficou 
famosa em Lisboa, a Emília”.
Muito famoso, no início dos anos 70, e dirigido a um público 
homossexual mais jovem, foi o Marygold, na Rua do Sol ao Rato, talvez o 
local que mais rusgas da polícia sofreu pela quantidade de denúncias que
 eram feitas. Muitas das testemunhas ouvidas pela Pública contam que as 
denúncias eram motivadas pela desconfiança de que ali iam homossexuais 
para se prostituírem e consumirem droga. Esta associação entre 
homossexualidade e drogas surge já no marcelismo e foi o início do 
crescendo de consumo de droga que explodiu já nos anos 1980.
Quanto a restaurantes, o primeiro assumidamente homossexual em 
Portugal foi a Baiúka, no Bairro Alto. O Alfaia era muito frequentado 
por lésbicas.
Lugares de encontro eram também as praias da Costa da Caparica. 
Octávio Gameiro explica que, quando não havia sequer ponte sobre o Tejo,
 a Costa dava segurança contra a polícia.
Serzedelo especifica que o local de eleição na Caparica era a praia do Castelo, hoje praia 14.
Nas universidades, só política
Fruto da guerra colonial e das ideias que vinham de fora, a sociedade 
portuguesa foi ganhando hábitos mais liberais e isso reflectiu-se na 
vivência da sexualidade. “Há um mundo libertário dos anos 60 e um 
movimento de reivindicação homossexual que entra em Portugal através de 
uma elite que tinha acesso ao que vinha de fora”, defende Cascais. Mas 
este investigador esclarece que esta abertura, que “entronca com a 
liberdade social que se viveu na Primavera Marcelista, existia só na 
alta sociedade, em alguma classe média nascente e nos meios artísticos e
 intelectuais”. As rusgas continuavam, mas “as pessoas não ficavam 
presas”.
A maior liberdade não tem eco na universidade. A professora 
universitária reformada Yolanda Gonçalves conta a sua experiência de 
aluna. “Na faculdade, para onde entrei em 1964, a luta académica 
dominava toda a cena. A mentalidade em Letras era de um conservadorismo 
atroz”, explica, precisando que se falava de homossexualidade mas 
“retrospectivamente” – de casos da reitora anterior, Vírginia Rau. “Era 
tudo muito abafado, muito às escondidas, porque a infiltração dos 
esbirros da PIDE estava no auge.” Acrescenta ainda que em Letras “a 
homossexualidade masculina continuava a ser mais visível”.
Cascais sustenta que “os estudantes universitários recebem a luta 
política, mas não bebem a luta pelos direitos das mulheres e dos 
homossexuais”.
É esta separação que, segundo António Cascais, está por detrás do 
facto de, “após o 25 de Abril, a sociedade portuguesa manter os padrões 
de homofobia”. E explica: “É que as elites que formaram os partidos 
vinham de universidades e de uma formação política que não incluía a 
defesa dos direitos das minorias, ao contrário do que se passou em 
Espanha, que viu nascer movimentos gay ligados aos partidos logo após o 
fim do franquismo.” (Em Espanha, o Estado está a revisitar as 
perseguições aos homossexuais e estão a ser concedidas as primeiras 
indemnizações.)
Assim, e em termos de vivência da homossexualidade, 1974 não trouxe 
liberdade. O Movimento de Acção dos Homossexuais Revolucionários (MAHR) 
morreu logo depois de publicar nos jornais o seu manifesto. Esse foi o 
primeiro documento de defesa de direitos dos homossexuais em Portugal e 
provocou a ira de um membro da Junta de Salvação Nacional, o general 
Galvão de Melo, que foi à televisão dizer que a revolução não se tinha 
feito para “prostitutas” e “homossexuais”.
Mas na sua breve vida, ainda organizou uma manifestação no Porto, 
junto aos Clérigos, que os jornais noticiaram como tendo mil 
manifestantes, mas que na prática teve “998 mirones a verem os dois 
‘paneleiros’”, conta Serzedelo, lembrando uma piada feita por um 
elemento do grupo sobre aquele dia.
Já o lesbianismo não teve direito a nada. Mesmo o Movimento de 
Libertação das Mulheres, que integrava várias lésbicas, nunca assumiu 
esta luta e a sua radicalidade foi apenas a da defesa do feminismo.
Só nos anos 1980 surge o que muitos homossexuais e estudiosos 
caracterizam de “democratização” ou de “proletarização” da 
homossexualidade. Uma viragem que Cascais assinala simbolicamente com a 
morte do cantor António Variações, a 13 de Junho de 1984: “Naquele dia, 
na Basílica da Estrela, percebi que havia um mundo que tinha morrido. 
Nada ia ser igual.”
Texto originalmente publicado na revista Pública


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